12710_10229_000000 a dor é religiosa porque nos aperfeiçoa e nos explica a nossa fraqueza nativa tristeza tu me fazes ir até o fundo das remotas raízes do meu espírito 12710_10229_000001 e milkau agora na frouxa luz da prisão notava surpreendido quão terrível fora a devastação da miséria no corpo da rapariga 12710_10229_000002 oh melancolia minha alma é a morada tranquila onde reinas docemente milkau caminhou ainda iluminado pelos últimos clarões da luz no céu não passavam mais os bandos das aves o sol resvalara de todo no fundo do horizonte 12710_10229_000003 debatia-se nas mãos deles e salvava-se ou pela disputa sensual da posse que entre dois pretos se formava ou pelo alarido levantado diante do qual se recolhiam cobardes e espavoridos 12710_10229_000004 pobre mulher como é triste a vida era o novo lentz que falava comovidos e angustiados os dois amigos separaram-se enquanto o outro voltava a se recolher ao repugnante albergue do cachoeiro 12710_10229_000005 o sol impaciente precipitava-se a mergulhar nos braços verdejantes e opulentos da terra futura e mostrava ao passado a outra face roxa fria e morta no silêncio dos ventos cabras aconchegadas aos filhos roçavam-se nos oitões das ruínas ruminando preguiçosas 12710_10229_000006 no desespero quis voltar ao incriado extinguir tudo e gerar novos seres que não fossem a sua imagem que não fossem divinos que gemessem que morressem e fossem humanos 12710_10229_000007 avolumando-se tudo arrastando tudo vencendo até que um dia seja um perene preamar de bondade e doçura que pode o homem insignificante e inútil erguer para desviar o curso o ímpeto da piedade e da simpatia 12710_10229_000008 implorava a companhia tenebrosa do vento e o vento se calava aquela invocação satânica com os olhos ardentes e devoradores buscava em vão reanimar as coisas que adormeciam a lua voltava para ele a sua lívida face de cadáver 12710_10229_000009 por ti compreendo a agonia da vida por ti que és o guia do sofrimento humano por ti faço da dor universal a minha própria dor que o meu rosto não mais se desfigure pelas visagens do riso cansado e matador 12710_10229_000010 obedecendo ao poder do inconsciente contra que tanto lutara curvou a cabeça e seguiu o amigo na estrada quando tudo se animava a passagem deles e ventos e pássaros e árvores cantavam em volta 12710_10229_000011 tudo era belo e tudo era bom porque tudo era ele depois não tardou a chegar-lhe a invencível monotonia de se ver a si a si indefinidamente 12710_10229_000012 e assim na região do silêncio as ânsias da criação agitaram o homem forte o princípio da vida o ímpeto de repetir-se eternamente erguia-se nele súplice e imperioso 12710_10229_000013 nas mãos de esqueleto e no peito mirrado milkau teve a impetuosa ânsia de arrebatá-la dali e carregá-la afoitamente para longe e pô-la onde as feras não fossem homens 12710_10229_000014 permaneceram juntos na colônia até o dia seguinte o contato de milkau alevantava e restabelecia o espirito do infeliz e agora num incomensurável pavor da solidão este se ia deixando governar pelo instinto da ligação universal 12710_10229_000015 lentz recapitulando a curta história da sua desilusão dizia consigo ah como tenho saudades dos meus sonhos de audácia dos meus desejos e ambições e tudo isto que eu e ele ambicionávamos fazer é nada 12710_10229_000016 mas o tédio de se ver único errante desalentava-o e imortal e infinito mergulhava o espírito no tempo imemorial e tremia de tristeza 12710_10229_000017 a sua velha alma aristocrática estremecia de repugnância e o espírito de sonhador soberano e forte que não se lhe tinha extinguido de vez estranhava o contato com a miséria revoltava-se por se libertar da moleza da piedade ardendo em remontar às alturas do silêncio e do império 12710_10229_000018 mas não é a ideia que governa o homem é o sentimento a nossa força individual não é nada em comparação à força acumulada na vida que pode um só contar a corrente imperiosa e dominadora formada pelas primeiras lágrimas descendo das origens do mundo 12710_10229_000019 sobre o cristal das águas a sua imagem o espreitava para o seguir ainda na morte e o delírio se repetia sob mil terríveis combinações nos dias serenos que abrasavam a alma frágil e desvairada do solitário 12710_10229_000020 dá-me a tua serenidade a tua séria e nobre figura tristeza não me desampares não deixes que o meu espírito seja a preza da vã alegria 12710_10229_000021 tudo era lânguido e vazio e descampado e deserto num canto da planície uma moita de árvores extinguia-se mansamente 12710_10229_000022 e uma ilusão perversa descortinava a sua imagem multiplicada em miríades de corpos formosos e serenos como a geração de um deus deliciou-se extasiado nos olhos da sua raça nos cabelos nos membros e traços de glória em que cada um resumia a beleza e a força do universo 12710_10229_000023 tudo era a expressão de vidas que se extinguiram de seres que se agitaram cheios de alma e que preparavam extáticos o leito admirável para o despertar do primeiro homem 12710_10229_000024 enfureceram-se e empregaram para vencê-la o medo a força e a crueldade as suas noites eram agitadas escapando ela sempre de ser violada pelos soldados assanhados e bêbados 12710_10229_000025 encontramos o nosso caminho a dor mesquinha e poderosa e ela nos guia e nos transforma toda a maldade nele era obra da imaginação refletia milkau acompanhando-o com o carinho dos olhos 12710_10229_000026 no meu rosto se estampava o riso contínuo e fatigante e ele afastava de mim os homens para quem a eterna alegria é morte mas tu tristeza não estavas longe tu te sentaste à minha porta numa postura de resignação e silêncio 12710_10229_000027 na conspiração da calma da solidão da luz do esplendor do infinito o espírito do homem delirava e nesse delírio a memória apagava-lhe as origens da existência o passado não tinha sido 12710_10229_000028 durante o tempo que ali passaram lentz ficou silencioso pela primeira vez se via num cárcere misturando-se com criminosos e réprobos 12710_10229_000029 tu és reveladora do meu ser a razão da minha energia a força do meu pensamento sobre ti me reclino como se foras um insondável e voluptuoso abismo tu me atrais e estendo-te os braços nesse doloroso e invencível amor com que o sonho ama o passado a morte ama a vida 12710_10229_000030 e quando nas noites sossegadas os tormentos da nova vida sobre-humana não o mortificavam ele penetrava na solidão infecunda do espírito e errava pelo deserto ululando amesquinhado e cobarde 12710_10229_000031 a dor é bela porque une os homens é a liga intensa da solidariedade universal a dor é fecunda porque é a fonte do nosso desenvolvimento a perene criadora da poesia a força da arte 12710_10229_000032 do alto da montanha aonde chegara precipitou-se fugindo da multidão de fantasmas que o perseguiam amorosos e escravos e que eram ele sempre ele aproximou-se do rio voou sobre este num impulso de salvação num desejo estranho de aniquilamento de alívio e parou 12710_10229_000033 curva-te sobre mim envolve-me com o teu véu protetor conduze-me oh benfazeja aos outros homens tristeza salutar melancolia 12710_10229_000034 a aragem se calara o débil vagido da cachoeira ia se perdendo para sempre e milkau cismava a dor é boa porque faz despertar em nós uma consciência perdida 12710_10229_000035 mas era tarde a garra da compaixão o prendia ao mundo que ele também assim fecundava com o seu quinhão de sofrimento na rua quando saíram da cadeia milkau ouviu como um eco do seu próprio coração estes murmúrios 12710_10229_000036 antes de te conhecer pérfida ilusão me entorpecia os sentidos e a minha frívola existência foi a lúgubre marcha do inconsciente risonho por um caminho de dores nesse momento eu ainda não te buscava sol moribundo 12710_10229_000037 e os dias que lhe concediam era para vingar as lutas da noite obrigando-a a trabalhar pra eles como uma escrava dando-lhe pancadas negando-lhe alimento 12710_10229_000038 não se enganava ele sobre exata situação da pobre vítima por mais que esta lhe sorrisse mostrando-lhe vislumbres de esperança e traços de resignação querendo com esforço apagar a história do seu martírio escrita indelevelmente nos olhos famintos no rosto murcho 12710_10229_000039 e como esperaste um dia a alegria de cansada se extinguiu e então soou para mim a hora da paz e da calma entraste e como desde logo amei a nobreza do teu gesto 12710_10229_000040 nas colinas baixas e humildes da redondeza destroços de pedras miravam com suas caladas máscaras de monstro a grande terra em frente as altas e viçosas montanhas onde se fartava a força dos invasores 12710_10229_000041 perdido no largo e desdobrado espaço o santa maria desembaraçado de pedras que antes o faziam vibrar alegre e vivaz passava vagindo mofino e lento 12710_10229_000042 procuraram seduzi-la comunicando-lhe por instinto a lubricidade mas quando a viram insensível e obstinada nas suas recusas fugindo ao velho costume da prisão onde as mulheres encarceradas eram amantes dos guardas 12710_10229_000043 e tudo formas deliciosas das coisas a água que ainda se movia árvores silentes e concentradas céus sol montes nuvens 12710_10229_000044 lentz quis que suas forças íntimas essenciais desagregando-se se fracionassem em parcelas imponderáveis e invisíveis como partículas de luz numa misteriosa fecundação do nada ansiado inquieto doloroso delirava 12710_10229_000045 elas vinham de outrora e ainda eram a derradeira vida que ali restava cadáveres de árvores derrubadas desmanchavam-se em pó e outras de pé tocadas pela morte vestiam-se de púrpura e ouro numa transfiguração gloriosa 12710_10229_000046 um movimento de piedade trouxe milkau a colônia durante todo aquele tempo não esquecera o seu companheiro de destino e quando houve uma parada no processo veio ao rio doce era ainda madrugada quando entrou no prazo 12710_10229_000047 milkau seguia sem propósito vagando para as bandas do queimado a região abandonada onde fora a antiga cultura do lugar e que atravessara no dia de esperança em que chegou à colônia 12710_10229_000048 e logo no jardim abandonado invadido pelo mato que não perdoa e está sempre atento ao descuido do homem milkau adivinhou tudo a casa estava aberta e derrubado no chão adormecia o pesado corpo de lentz 12710_10229_000049 chegado ao cachoeiro foram logo à cadeia durante a ausência de milkau tinha conhecido maria uma nova tortura a que sai das perseguições da sensualidade com sua brancura com a estranheza da sua raça ela vinha já de algum tempo alvoroçando os soldados negros 12710_10229_000050 ele e as formas que saíam da força solitária e desdenhosa acompanhavam no eternas e fatais lentz horrorizava-se de se ver a si mesmo numa multiplicação infernal 12710_10229_000051 e a nova existência das novas formas ia começar lentz sentiu-se maravilhado pelo cenário em que se abriam seus olhos sem passado virgens e primitivos 12710_10229_000052 sobre ele o céu cavado longínquo desdobrava-se sereno e luminoso o sol abrasava um mundo parado e morto ia errante e perdido embebidos os olhos no que ali era a única vida nas águas vagarosas deslizando como alma expirante 12710_10229_000053 pássaros no céu desmaiado buscavam o pouso da noite aquela hora no teatro da agonia milkau cismava não eu não te fujo doce tristeza 12710_10229_000054 entrou na velha terra exausta e morta ainda no chão que pisava estavam os marcos deixados pela geração extinta e vencida um dia tudo o que fora vida já por ali transitara 12710_10229_000055 imagine vossa senhoria se ficasse impune o delito se nós passássemos a mão por cima que seria da moralidade das famílias dos colonos para o futuro 12710_10229_000056 rasgavam-se lhe as entranhas dilatando-se á força depois a dor se interrompeu de novo e o suor frio banhou-lhe o corpo que jazia desfalecido e inerte até que arrancos lancinantes o agitaram outra vez 12710_10229_000057 maria horrorizada queria afugentá-los mas as dores a retomavam imperiosas nem mesmo tinha forças para um grito agudo e só podia gemer estrebuchando numa mistura de sofrimento e de gozo que a estimulava estranhamente 12710_10229_000058 vai vai e com um gesto incerto o expelia da sua vista desgraçada que te resta se me repeles vai vai meu deus e as mãos ora crispadas torciam juntas num aperto ora pesadas comprimiam como tenazes a cabeça não 12710_10229_000059 erguer o espírito estás tão fraquinha e doente não isto vai acabar haverá piedade da tua sorte tu sairás daqui e ainda a felicidade 12710_10229_000060 olhe eu mesmo vou escrever ao governador em segredo pedindo pelo menos a remoção do bederodes basta a remoção não é que vá para o inferno sim para o inferno repetiu o outro maquinal e pensativo então escreva posso contar 12710_10229_000061 seja bem vindo a esta casa saudou-o com servilismo o juiz de direito o alemão cumprimentou a todos com uma palavra amável para cada um muito macio e delicado entretiveram-se algum tempo sem pretexto numa conversa que prosseguia aos arrancos 12710_10229_000062 olha não te abandono continuava milkau direi aos outros que a culpa não é tua sim foram eles os responsáveis eles te perdoarão confessando a sua terrível falta 12710_10229_000063 a persistência de milkau tornava-o um familiar das audiências e muitas vezes depois de acabado o trabalho maciel entretinha-se muito à vontade com ele por seu lado milkau achava o juiz municipal uma esplêndida natureza e o ia estimando 12710_10229_000064 este continuava a vociferar quase esbordoando o negociante que procurava com um riso cobarde amparar a fúria do brasileiro sim criados vem aqui à casa do juiz de direito um bolas qualquer porque enriqueceu furtando o nosso dinheiro exigir em nome da colônia que colônia 12710_10229_000065 os porcos persistiam sinistros ameaçadores subitamente ela caiu extenuada largando a árvore um vagido de criança misturou-se aos roncos dos animais a mulher fez um cansado gesto para apanhar o filho mas exangue débil o braço morreu-lhe sobre o corpo 12710_10229_000066 deixou passar aquela visão que lhe parecia o fantasma da inocência levada para o martírio ao longe ela se foi perdendo apagando-se milkau abandonou felíssimo e precipitou-se no encalço para o juízo o agrimensor compadecido não procurou detê-lo 12710_10229_000067 deitada em uma mesa a criança morria a mãe ainda jovem debruçava-se sobre ela devorando-a com os olhos numa dor sombria confusa de animal o pai vagava a tremer pela sala atordoado com o desastre ouviam-se lamentos e choros em roda 12710_10229_000068 depois quando um grande vácuo se lhe fez de todo nas entranhas a dor cessou e maria mergulhou afundada em outra vertigem os porcos sentindo-a sossegada precipitaram-se sobre os resíduos sangrentos espalhados no chão 12710_10229_000069 já se sabe é nosso sim é meu posso dizer proclamou o negociante batendo com alarde no bolso da calça pantoja sorriu acompanhando o gesto quanto ao juiz municipal continuou o escrivão é verdade é um senhor cheio de maçadas esse doutor maciel 12710_10229_000070 afastando-se o mais possível da casa deixou o cafezal e aventurou-se para o lado do rio onde era mais deserto aí no terreno inculto e bravio as únicas árvores que havia eram esparsos cajueiros muito derreados esgalhando-se pelo chão 12710_10229_000071 maria abraçou-se ao tronco deitado do cajueiro os seus olhos desvairados não viam mais nada nos ouvidos entrava-lhe o resfolegar roufenho dos porcos que a cercavam atraídos pelo cheiro que daí se exalavam 12710_10229_000072 com o cuidado de uma ama a mão na rua para ir ensaiando os passinhos vacilantes milkau ficou sensibilizado vendo aquela face de homem primitivo e bárbaro molhada de lágrimas e sem a menor esperança fez com auxílio do tropeiro alguns curativos o médico não tardou 12710_10229_000073 todo o homem está em causa quando há um sofrimento no universo e partiu só no dia seguinte chegando ao cachoeiro a cidadezinha não tinha mais para ele o encanto daquela primeira manhã em que a saudara como filha do sol e das águas 12710_10229_000074 sim uma perdida o filho lhe seria um trambolho vossa senhoria a compreende mas não há de ser aqui que pegarão esses maus exemplos 12710_10229_000075 por sua vez ele vendo-a diariamente encantava-se em sondar essa alma primitiva rica de emoção e de bem-aventurada ingenuidade 12710_10229_000076 porque aí morre uma ilusão nossa no outro dia foi o enterro toda a gente da cidade numa espontânea unidade de sentimentos participava de um mesmo pesar tornando a tristeza coletiva a manhã era límpida lavada e azul uma banda de música alegre ruidosa como nos enterros de anjos puxava o preste 12710_10229_000077 a morte devia ser assim oh pior que a morte novas dores vieram abafadas quase surdas sacudindo-a violentamente dando-lhe ânsia de apertar alguma coisa contra si 12710_10229_000078 aqui itapecurú longe do assunto ficou nervoso sorrindo estúpido e sem propósito aos outros não se atrevia a chamar o alemão em particular e demorava com jeito o escrivão que também cheio de curiosidade se não apressava 12710_10229_000079 ora erravam nas pequenas cidades do reino e ressuscitavam lendas subiam aos alpes gelados e guardavam nas pupilas as cores maravilhosas do sol a morrer ora nas grandes cidades tumultuosas sem piedade onde há fome 12710_10229_000080 uma vertigem turbou-lhe a visão enfraqueceu-lhe os ouvidos e numa volúpia de bem-estar parecia deliciosamente suspensa nos ares longe da terra longe do sofrimento ouvindo no arfar dos porcos o resfolegar longínquo e adormecedor do mar 12710_10229_000081 porque não é são os mais culpados maria estremeceu as lágrimas secaram-lhe instantaneamente milkau prosseguia arrastado pela deliciosa ânsia de confortar 12710_10229_000082 os porcos pouco a pouco se iam aproximando e a miserável alheia a si mesma entretinha-se em acompanhar-lhes amorosa viagem sempre as mesmas dores agora mais miúdas mais cortantes acabando num grito soluçante que se perdia num longo espasmo 12710_10229_000083 mas apenas pairou um momento livre e logo caiu vencido aniquilado aos pés do dominador quero saber quero insistia milkau a rapariga esperava submissa porque não me chamaste em teu socorro quando te viste desamparada perseguida porque não confiavas em mim 12710_10229_000084 não faça caso um imbecil dá-se um berro com ele e tudo vais direito e depois temos o itapecurú e as testemunhas e eu esse seu criado que mói a mandioca concluiu com jactância o cabra sim perfeito ninguém discrepa 12710_10229_000085 sim a justiça para todos velhos e jovens que pode fazer uma sociedade sem ordem é a base é preciso termos sempre em vista o elemento conservador do país 12710_10229_000086 vergonha disseste e por isso mataste teu filhinho miserável teu filhinho mas eu não matei ninguém gritou num esforço a infeliz não negues eles te acusam eles são maus 12710_10229_000087 está claro acudiu pantoja nós somos amigos velhos e nunca o senhor me pediu nada desarrazoado nem a mim capitão acrescentou itapecurú espraiando as bochechas um riso grotesco que o desarmou do monóculo 12710_10229_000088 instintivamente hesitava em acusá-la para que levantar ali o espectro do crime e ela se reanimava e pouco a pouco ao poder misterioso da bondade ia surgindo a sua consciência entorpecida 12710_10229_000089 culto de maria que ia insensivelmente apagando absorvendo todos os outros toda a noite passou milkau a confortar a família ele estava também esmagado e abatido e quando olhava o mortozinho cismava é dolorosa ainda mais do que as outras a morte de uma criança 12710_10229_000090 o crime é horrível e a dignidade dos alemães exige uma lição severa a colônia sabe disse gravemente itapecurú que aqui não falta justiça havemos de examinar tudo com o cuidado que sempre empregamos em nossa missão 12710_10229_000091 milkau entrou apreensivo as grades não deixavam penetrar no aposento toda a luz do dia e na minguada claridade viu maria sentada sobre o estrado que lhe servia de cama 11995_10229_000000 sob a transparência cristalina do firmamento a terra intumescida parecia a hora do amanhecer sair de si mesma e querer se alevantar para o céu para o espaço 11995_10229_000001 e a vida dentro deste quadro sorria-lhe como uma deslumbrante ressurreição o trabalho pelas próprias mãos dava-lhe a sensação positiva da sua dignidade humana 11995_10229_000002 e sobre elas dava grandeza aos seus sonhos de vida outras vezes caçava extenuando-se calmando-se num esforço tenaz e porfiado 11995_10229_000003 para se distrair e dar um pouco de fadiga aos nervos lentz encarregava-se das viagens das compras da casa e sentia uma expansão de alegria quando atravessava solitário as montanhas em silêncio 11995_10229_000004 milkau estava destinado a ser pouco a pouco a figura central daquela região e sem reparo os colonos iam absorvendo o seu imortal prestigio 11995_10229_000005 vendo-o assim atento mais lhe queriam os camponeses que ele não atemorizava com a sua educação e em sua presença tinham instintivamente uma atitude cheia de simpatia e respeito 11995_10229_000006 e a bondade do sentimento entorpecia-lhe as maldades grandiosas do seu idealismo e assim inativo paralisado caminhando na doce sombra de milkau 11995_10229_000007 como a terra bebe imperceptivelmente as finas gotas do orvalho até ficar saciada ao contrario do seu companheiro lentz vivia triste num íntimo e reservado desespero 11995_10229_000008 ao longe a capela branca rodeada pela multidão que fervilhava que ondeava parecia mover-se como uma presa arrastada vagarosamente por um formigueiro 11995_10229_000009 ficara ali ao lado de milkau incapaz de abandoná-lo preso as seduções do camarada que eram o estímulo para a agitação do seu pensamento o caráter fraco traia a audácia do sonhador 11995_10229_000010 nada existia ali que fosse a traição do gosto refinado ou uma pequena consolação de volúpia apenas quebrando a uniforme monotonia rústica 11995_10229_000011 sempre calado desdenhando qualquer conversa o velho alemão ágil enérgico primitivo seguia cercado da sua matilha 11995_10229_000012 esta ficava-lhes à frente e os olhos deles abrangiam todo o panorama claro feito de uma dourada luz e de pequenas elevações como ondas regulares brandas e fixas de um oceano manso 11995_10229_000013 trabalhava mansamente no quinhão da terra que ocupava a sua pequena habitação erguida no silêncio da mata era humilde como a outras dos colonos 11995_10229_000014 alguns passavam a galope e esse ardor comunicando-se aos outros então era de ver a carreira folgazã de toda a gente pelos caminhos quanto mais perto da igreja mais a multidão se engrossava 11995_10229_000015 era então que lhe sucedia encontrar no mato o vizinho taciturno que passara na tarde de sua chegada defronte do barracão 11995_10229_000016 pela encosta do morro que vai ter à capela via-se a subida dos pigmeus a multidão desembocando ali de toda a parte parecia borbulhar de dentro da terra 11995_10229_000017 levavam-no a desejar atingir a eternidade e dissolver-se no infinito quando já se as avizinhavam do jequitibá iam pelo caminho encontrando colonos a pé ou montados formando caravanas 11995_10229_000018 o pai iluminado por um sorriso de mártir e a mulher criança que amara quando ela passou diante dos seus olhos transfigurando-se para morrer 11995_10229_000019 sem demora milkau espairava-se em relações com o grupo colonial do rio doce achava um encanto em conviver com esta gente primitiva que o recebia sem desconfiança 11995_10229_000020 e que se ia deixando infiltrar sua cordura e meiguice milkau sem orgulho de inteligência conformava-se com todas as lições que lhe davam os antigos e experientes colonos sobre as coisas da lavoura 11995_10229_000021 o quarto de dormir de milkau impressionava como uma capela ardente de amor de veneração e de saudade estava povoado de retratos 11995_10229_000022 em certos pontos havia necessidade de demorar o passo para não atropelarem e tomavam uma rítmica marcha de procissão 11995_10229_000023 cujos cães o festejavam aos saltos ou iam a sua frente de orelhas caídas farejando o chão uma tarde lentz voltava da santa teresa 11995_10229_000024 a felicidade de milkau era perfeita tinha limitado o inquieto desejo apagado do espirito as manchas da ambição do domínio e do orgulho e deixado que a simplicidade do coração o retomasse e inspirasse 11995_10229_000025 estava ele todo possuído pelo espirito da ascensão e sua alma escalara também nas regiões silenciosas plácidas e vastas do infinito 11995_10229_000026 a vida que tomara era para ele uma grande humilhação torturando essa pungente agonia de praticar a existência condenada pela ideia 11995_10229_000027 e na madrugada seguinte os dois amigos partiram marchando sempre por um caminho de montanhas raras vezes a paisagem transmitiria a milkau uma emoção maior do que naqueles terrenos altos 11995_10229_000028 famílias e grupos ininterruptos enchiam as estradas todos vinham radiantes excitados pela fresca manhã e pela esperança do prazer em sociedade pois havia muitos meses que não se abria a capela 11995_10229_000029 os mais eram retratos das grandes figuras humanas poetas amorosos sofredores era com essas imagens que mikao vivia na comunhão funda e religiosa 11995_10229_000030 os dois amigos depois de algumas horas de viagem ao saírem de um atalho coberto descortinaram a capela do jequitibá 11995_10229_000031 os seus olhos procuravam em torno o mundo para onde ele se queria dirigir num forte desejo de afeição feliz e engrandecido não pelo que tinha feito mas pelo que aspirava fazer 11995_10229_000032 que dá a alegria perpétua e que enche o vazio do isolamento sentia-se amparado por um fluido de esperança que resignação que emanando do amor e das lembranças o envolvia dando-lhe uma armadura invencível 11995_10229_000033 e os colonos não se reuniam desde dessa época era com muita alegria que recém chegados que se saudavam mutuamente 11995_10229_000034 que os rios de sangue não correram de pais a filhos longamente carregando as vibrações recebidas em cada célula dolorosas lentas trabalhando afinando o mundo dos nervos até enfim se formar no homem a derradeira de su 11995_10229_000035 seja do que for de um deus ou de uma abstração como a que diviniza a sociedade humana é inseparável do homem ele é a expressão da nossa emoção imorredoura do nosso eterno pasmo no universo ou a exaltação do nosso amor 11995_10229_000036 ao juiz de direito e este pondo maquinal o monóculo para melhor entender sorria benévola e cavalheirosamente os alemães cheios de respeito não se moviam concentravam-se recolhidos ao livro de orações 11995_10229_000037 entoava hinos ele debaixo das harmonias escrevia poemas sagrados porque escrever é cantar com a pena musica cessou o órgão na capela do jequitibá milkau teve um ligeiro sobressalto 11995_10229_000038 escorregando vagarosamente ninguém se apressava com receio de um perigo atropelo e a grande vozeria de comentários de galhofas as grandes gargalhadas e gritos festivos rebentavam das mil bocas da multidão matando a 11995_10229_000039 rado com o aroma da terra o cheiro das flores que as raparigas traziam ao cabelo e das roupas domingueiras guardadas longo tempo nos baús amenizava o odor forte das multidões o povo continuava no seu burburinho tumultuoso e alegre 11995_10229_000040 proteger do sol apertava-se debaixo de um mísero arbusto os animais bufavam espanavam-se com os rabos triturando surdamente o milho a multidão impelia-se lentamente para as portas num movimento inconsciente 11995_10229_000041 muito fitando com desprezo e rancor o pastor e os colonos o terceiro o juiz municipal coçando a barba por desfastio num grande abandono espreguiçava-se no banco estirando as pernas e bocejando ás vezes murmurava alguma 11995_10229_000042 ciência no nosso espirito é como a nossa na planície do deserto o horizonte foge sempre é inatingível à medida que caminhamos além além há sempre o desconhecido e o culto que o idealiza e o culto 11995_10229_000043 dados com a cabeça a rir muito até logo picou o burro com veemência deu-lhe chicotadas gritou para a frente e se foi num galope espantando os colonos com os berros e a correria os outros executaram as indicações do cearense e foram andando apressados 11995_10229_000044 tranquilidade da região silenciosa milkau e o companheiro vinham-se também arrastando partilhando da alegria e esquecidos de si para se misturarem na comunhão ali formada pelo acaso e pelo impulso comunicativo embaixo na cru 11995_10229_000045 tá com olho de fornecedor a comida vender muita cerveja e tudo mais ora vamos sair é verdade que estou montado e não podemos ir juntos mas não há dificuldade o caminho é este da esquerda vai descendo depois torna a subir e quando 11995_10229_000046 milkau mirava para todos os lados e ao longe descobriu felicíssimo joca e o grupo de trabalhadores da comissão de terras que desde algum tempo tinha deixado o rio doce continuando as medições para outras bandas 11995_10229_000047 pela estrada no alto estava realmente a venda onde já se aglomeravam muitas pessoas formando grupos diferentes todos alegres a taberna era limpa bem arrumada e com duas portas largas dentro encostados ao balcão os alemães 11995_10229_000048 essem logo os dois amigos consultaram-se com o olhar meio indeciso mas lentz não demorou em responder pois sim iremos assim é que eu gosto da rapaziada disse radiante o agrimensor que não tem historia nem maçadas falou-se em patusca 11995_10229_000049 o cimo onde se erguia a capela formava uma esplanada e nela a massa de gente remexia acotovelando-se um vozear confuso 11995_10229_000050 respeito de duas outras que se viam um no coro da capela aquela mais magra e morena tem cara de judia sim mas me parece muito boa pessoa é a mulher do novo pastor ah e a outra é que é a irmã dele quem veio 11995_10229_000051 o agrimensor estava com um cravo ao peito e do bolso do paletó pontas de lenço saíam espalmadas cumprimentou de longe com uma barretada e um riso desdentado ora disse lentz em voz baixa depois de algum tempo 11995_10229_000052 um vê outro a cara não engana e de onde os conhece daqui mesmo outro dia vim preparar a horta que estava toda abandonada agora se pode ver creio que o pastor tem gosto pelas plantas a irmã mete-se em tudo e frau pastor 11995_10229_000053 o corpinho fino esguio as crinolinas as rendas o casaco severo as toucas de seda os simples panos 11995_10229_000054 é verdade concordou mikau acompanhando as observações que o amigo fazia sobre os detalhes das vestes mas também admiremos a felicidade deste povo até os velhos a alegria dos velhos é um mandamento para a vida misturado 11995_10229_000055 homem há de enterrar com os antepassados o culto que eles nos legaram tudo será esquecido e o homem viverá sem terror milkau fitou muito calmo o amigo esteve um instante calado hesitando se devia responder afinal 11995_10229_000056 e a musica do órgão as vozes das cantoras vieram numa desabafada desforra levantar os ânimos os três pastores reuniram-se no fundo da igreja e leram sucessivamente os salmos a música foi suspensa um instan 11995_10229_000057 de olhos fechados voltavam-se para o abismo vazio de seu espírito que miravam absortos e suspensos sem a menor vibração íntima sem um pensamento e o tédio envolvia a capela até que o novo pastor terminou a prédica 11995_10229_000058 cada uma das mulheres ainda tinha o seu vestido segundo o uso do momento em que deixara o país o vestido largo de cintura curta e babados 11995_10229_000059 e é sempre uma força salutar divina defronte deles no começo da ladeira do morro três homens chegavam esporeando com força os animais que subiam arquejantes quando se apearam milkau reparou que eram os 11995_10229_000060 segredos do som e de transportar além de si mesma perdendo a própria essência na mais copiosa e alucinadora emoção música que conjunto de sensações não se acumularam desde as remotas almas progenitoras 11995_10229_000061 não enjeita bem eu vou indo vou na frente mando guardar três lugares na mesa para nós temos muito o que desenferrujar e apontava com a mão livre a língua depois tomado de uma repentina excitação passou a fazer trejeitos 11995_10229_000062 armazém de jacob miller outro dia parece uma pessoa muito de bem também se não fosse pra que lhe darmos o nosso dinheiro ah isso você sabe não há remédio senão darmos não fomos nós que encomendamos um pastor a roberto seja como for 11995_10229_000063 também o seu ao pescoço enquanto as mulheres velhas agitavam as saias refrescando-se com estrépito abatava-se e murmurava-se alguns se esgueiravam para as escassas sombras das paredes um grupo para se 11995_10229_000064 aqui e acompanhemos esta boa gente nós nos divertiremos vendo divertir-se os outros mas francamente eles podiam se divertir de outra forma essa religião ela é venerável como toda e qualquer outra haverá um tempo em que o 11995_10229_000065 não se não estás morto continuemos porque receio uma vez em casa não tornar a sair por este sol e lá se foram deitando um olhar de cobiça ao caramanchão ruidoso onde o verde das folhas entrançadas nas grades 11995_10229_000066 de lentz sobre o protestantismo que sempre entendeu como uma religião seca e simples aquela que mais se liga ao judaísmo pela austeridade pelo rigor excessivo de seu monoteísmo uma religião rústica cujos melhores 11995_10229_000067 e raparigas a correr pelo morro abaixo gritando de júbilo e levados pela excitação de chegar sem demora isto transmitiu-lhes também o desejo de correr de se perder na alegria do ar na vertigem da descida e correram também 11995_10229_000068 e o sobrado onde se percebia mesmo de cima o movimento de uma reunião apertemos o passo propôs lentz que não vale a pena mais nos pouparmos quando lá está o nosso refugio sim agora vai depressa é só descer e ao lado deles passava um rapa 11995_10229_000069 por temos que o aguentar depois do descanso do primeiro momento à sombra recomeçava a impaciência que se esforçavam por conter mas que se percebia nos bocejos nos movimentos de pernas e de braços não tardou porém que um a 11995_10229_000070 corde de harmonium soasse chamando todos à respeitosa continência a multidão apaziguou-se e o instrumento continuou a cantar os solos como murmúrios de piano e de flauta seguidos de um acompanhamento misterioso de vozes 11995_10229_000071 mas logo se habituaram e entretiveram-se enquanto a capela se não abria em mirar o povo 11995_10229_000072 fantasista de um baile de máscara só isso paga a viagem disse lentz gracejando um perito poderia fixar pelos vestuários a época de cada migração 11995_10229_000073 de quem ia forçá-las mas estacava empurrando para trás para adiante zumbindo e espalhando o calor corpo a corpo a porta afinal abriu-se e foi uma invasão alvoroçada na capela sombria e fresca 11995_10229_000074 a terra antiga no passado e milkau agora de olhos cerrados não percebia mais as fronteiras do sonho e da realidade tudo se confundia estranhamente ele vê uma figura de mulher que entra na sombra silenciosa e brandamente 11995_10229_000075 formava um quadro para as cores simples álacres dos vestidos das mulheres no caminho viram muita gente que tomava o rumo da casa da festa e quando chegaram à lombada de um morro avistaram embaixo um fio de água veloz e a beira 11995_10229_000076 parecia-lhe já ter visto em outra vida aquela mesma cabeça de maciços e crespos cabelos de infante com a mesma suave e meiga expressão e ela o olhava vagamente distraída e quando reparou que era 11995_10229_000077 colônia não há convites em se sabendo que há uma festa a gente não tem mais que se apresentar porque isso também faz parte do negócio que negócio interrogou milkau que negócio repetiu o agrimensor respondendo então não sabe o sujeito arranja fes 12707_10229_000000 é homem e senhor o fim de toda a sua vida não é a ligação vulgar e mesquinha entre os homens o que ele busca no mundo é realizar as expressões as inspirações da arte as nobres indomáveis energias os sonhos e as visões do poeta para conduzir como chefe como pastor o rebanho que importam a 12707_10229_000001 de algas e vegetais primitivos para os quais o mineral da terra é um alimento muito tempo passado quando aquelas sementes primeiro rejeitadas foram de novo para ali carregadas já encontraram a terra formada pelas algas e sobre ela medraram espalhando pelo chão a sombra protegendo os primitivos moradores da pedra 12707_10229_000002 o amor os reclamará á vida pois criar homens é a sua obra um dia será a subordinação de tudo a todos para maior liberdade de cada um é a parábola que descreve a vida da grande escravidão para a maior individualidade lentz olhando a floresta vê como tudo te desmente esta mata que é da 12707_10229_000003 para desaparecerem imediatamente mas o conjunto humano formado dos povos das raças das nações não para em sua marcha caminha progredindo sempre e os seus eclipses os seus desmaios não são mais que períodos de transformações para épocas fecundas e melhores é a fatalidade do universo que se cumpre nesse todo que é uma par 12707_10229_000004 da comodidade ou da ambição para quem não queria definhar na esterilidade e no egoísmo para quem buscava o que é eterno a guerra é uma volta ao passado a um ideal morto para a civilização e de que o meu novo pensamento ainda mais se afastava não tinha aonde ir e neste embaraço a minha crise prolonga 12707_10229_000005 no meio de confusas aspirações neste contato estranho de sentimentos tão vários pode-se acaso fundar a harmonia sossegada e doce da vida a religião foi-se ela do tempo e como o próprio tempo uma vez perdida não volta mais uma civilização de guerreiros persiste no meio do surto da alma passi 12707_10229_000006 lentz como respondendo a uma interrogação escrita nos olhos de milkau questão de amor ou antes questão de consciência amei uma mulher que pensei ser a criatura sublime que fraca ama o forte que humilde ama o soberbo e nós fomos assim pelo caminho suntuoso da minha fantasia arrastando-a eu após mim 12707_10229_000007 é o futuro humano a substituição de uma raça não é remédio ao mal de qualquer civilização eu tenho para mim que o progresso se fará numa evolução constante e indefinida nesta grande massa da humanidade há nações que chegam ao maior adiantamento depois definham e morrem outras que apenas esboçam um principio de cultura 12707_10229_000008 ei chegar que caminho não percorreu o homem a liberdade é como a própria vida nasce e cresce na dor oh mas essa dor deita gotas de amargura sobre a vitória não o verdadeiro homem é o que se libertou de todo o sofrimento aquele cujos nervos não se contraem nas agonias 12707_10229_000009 eu saía da universidade e entrava no mundo quando meu pai morria minha mãe com lágrimas molhava a noite e dia as saudades plantadas no seu coração ela foi mesquinha de dor e eu amei-a até a sua morte como uma filha tamanhinha e mofina e então depois de três anos essa 12707_10229_000010 abundante vadia pelos ares leve como arminho farfalhante como areia no tempo dessa única preocupação reinava em meu espírito um esquecimento das desgraças do passado ou dos cuidados do futuro e esse ouvido me parecia a felicidade pela hipnose com que adormecia a minha consciência assim vivi longo tempo e tão engolfado no meu culto 12707_10229_000011 dele quando não há um trabalho à flor das coisas luminoso e doce há uma elaboração subterrânea tenebrosa e forte as vezes é num ponto isolado da superfície que se dá a opacidade das trevas e pela fusão um povo aí se forma recapitulando a civilização desde seu ponto inicial e preparando-se para levar o progresso 12707_10229_000012 da época mas pelo fato de não florescer certa forma de arte o progresso artístico não deixa de ser maior se a verdade estivesse na conclusão contrária então a humanidade teria retrocedido depois do período grego e da renascença porque até agora a história não conta épocas tão felizes para a escultura e para a pintura 12707_10229_000013 pelas frestas das árvores pela transparência das folhas desce uma claridade discreta e nessa suave iluminação se desenrola dentro do mato o cenário pomposo das cores 12707_10229_000014 ladeados de árvores sem fim tornavam com frenesi com excitação ao diálogo perpétuo dos temas eternos na verdade há muito pouco tempo eu não poderia imaginar-me aqui nesta floresta nós somos governados na vida pelo imprevisto a história é muito simples disse 12707_10229_000015 anto ela fugia de mim longos tempos se passaram nessa enganadora caça todos os meus estudos os meus brincos os meus sonhos de criança tiveram a forma dos pequenos e intensos martírios eles vertiam lágrimas e suavam sangue como estremeço ao lembrar-me de tanta vida de tanto amor consumido por uma sombra 12707_10229_000016 mas como a maior parte deles indeciso em sua vasta cultura escolar meu pai lentz era a própria doçura e as imagens que dele conservo no fundo da minha pupila são de um homem feito de sorrisos suaves inextinguíveis tinha uma inteligência sutil e aérea mas o pudor da audácia o entorpecia e por isso todo o seu grande capi 12707_10229_000017 baraço imenso ora interrompeu milkau tu sabes bem como se tem vencido aqui a natureza como o homem vai triunfando mas o que se tem feito é quase nada e ainda assim é o esforço do europeu o homem brasileiro não é um fator do progresso é um híbrido e a civilização não se fará jama 12707_10229_000018 mais a áfrica o tempo da áfrica chegará as raças civilizam-se pela fusão é no encontro das raças adiantadas com as raças virgens selvagens que está o repouso conservador o milagre do rejuvenescimento da civilização o papel dos povos superiores é o instintivo impulso do desdobramento 12707_10229_000019 a princípio a estrada cortava por cima de pequenos morros descobertos onde numa paisagem acidentada e limpa passeavam errantes as sombras das nuvens daí a momentos ela morria na boca da mata 12707_10229_000020 na volúpia harmoniosa desse perfume que é acre e tonteante com a claridade que é branda está a fonte do repouso da mata o silêncio que mora na floresta é tão profundo tão sereno que parece eterno feito das vozes baixas dos murmúrios dos movimentos rítmicos dos vegetais 12707_10229_000021 porque é sobre ela que se fundará o futuro não amaldiçoemos a civilização que nos veio no sangue antigo mas façamos que este sangue seja cada dia mais amoroso e menos carniceiro que os nossos mais entranhados instintos da animalidade se transformem no voo luminoso da piedade da dedicação e do amor 12707_10229_000022 entretecido no alto pela cabeleira basta e densa das árvores e embaixo pela rede intérmina das fortes e indomáveis raízes todo ele se entrelaça enroscando-se pelos braços gigantescos prendendo-se como por tenazes numa grande solidariedade orgânica e viva 12707_10229_000023 foi pela arte que comecei a amar a natureza pois até então a minha atenção ao mundo exterior era vaga e incerta eu só tinha os olhos voltados para o meu caso pessoal e para as minhas cismas longas e indefinidas no momento em que tratei a arte em que me possui a beleza a minha vista se alongou pelo mundo afora e eu 12707_10229_000024 untuoso e doce que estreita a terra cheia de anfractuosidades as quais são abrigos para os homens mar que não espanta mar amigo que é um traço de união entre as gentes e de outras praias brancas imensas espiei o outro mar o mar tenebroso que apavora que domina e que é em si mesmo como a própria liberdade 12707_10229_000025 de separação no princípio era a força no fim será o amor não milkau a força é eterna e não desaparecerá cada dia ela subjugará o escravo essa civilização que é o sonho da democracia da fraternidade é uma triste negação de toda a arte de toda a liberdade e da própria vida o homem 12707_10229_000026 no mármore ou embebendo-me na poesia infinita da cor no enigma insondável da figura humana o meu espírito descansava e apoiava-se para a existência e então pus-me a viajar longos dias pelas antigas paragens onde a arte busca ainda a sua fonte de mistério e rejuvenescimento 12707_10229_000027 não vejo nada claro disse lentz e fechando os olhos feridos pela luz grandiosa do dia sentia dentro das pálpebras na câmara rubra das pupilas fuzilar relâmpagos de sol 12707_10229_000028 de trabalho tratava-se também de uma livre expansão da individualidade e a indústria nesta velha civilização é um desfiladeiro apertado de combate no meio da sociedade que ela divide em senhores e escravos ricos e pobres a minha angústia continuava e por entre esses tormentos a minha 12707_10229_000029 existência entre a recordação e a piedade parti de heidelberg com a alma cheia de um grande silêncio comecei a ouvir os acentos da minha própria voz e não te veio ao encontro uma voz de mulher não e nunca amaste a mulher 12707_10229_000030 sobre que se possa desenvolver a civilização será sempre uma cultura inferior civilização de mulatos eternos escravos em revoltas e quedas enquanto não se eliminar a raça que é produto de tal fusão a civilização será sempre um misterioso artifício todos os minutos roto pelo sensualismo pela bestialidade e 12707_10229_000031 jamais nas raças inferiores vê a história um dos erros dos intérpretes da história está no preconceito aristocrático com que concebem a ideia de raça ninguém porém até hoje soube definir a raça e ainda menos como se distinguem umas das outras fazem-se sobre isto jogos de palavras 12707_10229_000032 deslocando se sem interrupção indo de grupo a grupo através de todas as raças numa fatal apresentação gradual de grandes trechos da terra á sua luz e calor uns se vão iluminando enquanto outros descem ás trevas até agora não vejo probabilidade da raça negra atingir á civilização dos brancos 12707_10229_000033 diante da obra da civilização o papel de cada um é igual ao do outro a ação dos grandes e dos pequenos confunde-se no resultado a história é testemunha que a cultura não é somente a obra do crime e do sangue ao lado da coação moral concorrem as alavancas da simpatia a obra do passado é ainda venerável 12707_10229_000034 escravidão inicial no princípio era o caos massas informes apresentavam-se como manchas de nebulosas cobrindo a terra pouco a pouco desta confusão cósmica os homens se destacaram e as personalidades surgiram enquanto os outros ainda jazem informes na matéria geradora mas um dia chegará também para estes a hora da criação 12707_10229_000035 dentro as parasitas se enroscam pelos velhos troncos com a graça de um adorno e de uma carícia há mesmo árvores que são mães de árvores e suportam com fácil e poderosa galhardia a filha que lhe sai do regaço e mais esplendorosa as vezes que a rija e bela progenitora 12707_10229_000036 atravessamos é o fruto da luta a vitória do forte cem combates travou cada arvore destas para chegar a sua esplêndida florescência a sua história é a derrota de muitas espécies a beleza de cada uma é o preço da morte de muitas coisas que desde o primeiro contato da semente poderosa foram destruídas como é magnífica 12707_10229_000037 é a verdade porém é que ao tocarmos a região do assombro tal espetáculo nos priva da liberdade de ser e afinal nos constrange é o que sucede com esta força esta luz esta abundância nós passamos por aqui em êxtase não compreendemos o mistério 12707_10229_000038 a natureza inteira o conjunto de seres de coisas e homens as múltiplas e infinitas formas da matéria no cosmos tudo eu vejo como um só imenso todo sustentado em suas ínfimas moléculas por uma coesão de forças uma reciproca e incessante permuta num sistema de compensação de liga eterna 12707_10229_000039 inacessível tentador é indomável o meu deslumbramento pela natureza afastava-me de tudo o que não fosse contemplação carregando por toda a parte a minha admiração sucedia-me passar longos tempos solitário nas florestas nos lagos e nos campos num êxtase de louco a extrair das coisas a suma da beleza 12707_10229_000040 uma aspiração indefinível de amor de calma de sonho que sempre me fugiam a minha tortura era infinita a minha melancolia acabrunhadora minha amada minha mãe meu pai custava-me já resistir a tanto a minha doença moral parecia-me irremediável a mim torturado de um desejo de realidades quando 12707_10229_000041 religião da arte e não se pode substituir a sua consciência fecunda pelo império de uma insensibilidade feroz quanto a mim penso que devemos voltar atrás apagar até os purificar-nos do seu veneno que nos mata depois de nos 12707_10229_000042 pela solidão das montanhas de neve já pelos lagos verdes que refrescam as terras já pela cidades traficantes e vis minha amada conheceu as vibrações infinitas da volúpia minha amada amou no sangue na carne e depois disso eu a julgava recompensada e feliz mas um dia revoltou-se e a alma da mulher do ocidente que a longa 12707_10229_000043 em pleno domínio do sensualismo a vida solitária dos monges evaporar a minha animalidade e dissolvê-la na combustão de um sentimento ativo e fecundo tal foi a nova via por que caminhei concentrado num lugarejo encravado no coração dos alpes da baviera absorvi-me no estudo e na cisma e 12707_10229_000044 prolongava-se pois não era mais escolher entre a vida e a morte e sim entre qualquer vida e uma vida essa uma vida que eu sonhava que eu queria e por toda a parte procurava não podia descobrir não podia ir às oficinas ir à indústria porque ali não encontrava ainda a atmosfera para a minha independência e o meu amor não se tratava 12707_10229_000045 e o amor viver a vida na igualdade é apodrecer num charco toda a marcha humana é uma aspiração da liberdade esta é o verdadeiro apoio o estímulo a razão de ser de uma sociedade a ordem não é um princípio moral é apenas um fator preexistente e indispensável ao conceito 12707_10229_000046 contrariar aqueles que cruzam as armas são os mortos os grandes seres absorvem os pequenos é a lei do mundo a lei monárquica o mais forte atrai o mais fraco o senhor arrasta o escravo o homem a mulher tudo é subordinação e governo milkau olhando a mata 12707_10229_000047 para sempre e milkau foi interrompido pelo repique das campainhas que descia pela estrada redobrando a amplidão das vozes sonoras no silêncio da mata pouco a pouco estes sons perdiam a doçura melancólica e se confundiam com gritos humanos e tropel de animais não tardou que os dois amigos vissem uma tropa 12707_10229_000048 de expansão carnal quanto não matou o belo ipê a beleza é assassina e por isso os homens a adoram mais o processo é o mesmo por toda a parte e o caminho da civilização é também pelo sangue e pelo crime para viver a vida é preciso ir até ao último grau de energia é preciso não a contrariar 12707_10229_000049 quando outras lhes saem ao encontro interrompendo a simetria entre elas se curvam e derreiam até ao chão a farta e sombria coma árvores umas largas traçando um raio de sombra para acampar um esquadrão 12707_10229_000050 torturante de resolver de qualquer modo de terminar as minhas vacilações e desalentado procurei realizar a ação pela única forma que me pareci positiva na vida isto é pela morte mas a contemplação da miséria moral em torno de mim susteve aquilo a que em minha insânia eu chamava o ato da vontade todos os sofrimentos estranho se 12707_10229_000051 tu eras grande quando a tua sombra sinistra de solitário passeava nos alpes e amedrontava os ursos mas quando o amor penetrou em ti começaste a minguar a tua figura de homem vai se apagando e eu verei o teu semblante um dia sem luz sem vida sem força mirrado pasto da tristeza 12707_10229_000052 como uma ilha solitária que arde no meio do mar os seus fogos deslumbrantes têm um fantástico poder de iluminação sobre o mundo mas as suas labaredas afastam dela os homens e eu não podia consumir-me nessas chamas pois já trazia dentro de mim a porção de humanidade que me conduzia à vida então uma manhã desci das alturas 12707_10229_000053 dos pássaros dos insetos dos animais ocultos no segredo da selva se desprende um cheiro misterioso e singular que se volatiliza e se difunde no imenso todo e tal como o aroma das catedrais acalma embriaga e adormece as coisas 12707_10229_000054 capital de bondade e de amor ficou sepultado no fundo do seu coração e o mundo o ignorou ele continha e refreava a imaginação oh como ele mesmo criava barreiras ao seu espírito os preconceitos chegavam-lhe ao apelo da sua timidez e ele os acariciava como se fossem numes protetores mas em tudo isto a 12707_10229_000055 consolação não te veio a princípio iludi-me pensando que não havia outra existência tão forte tão nobre mas os velhos monges tinham como sustento o consolo da adoração o meu isolamento era apenas intelectual uma forma de desdém do mundo uma expressão mesquinha de quem foge do seu logar na vida depois dos primeiros momentos 12707_10229_000056 das coisas atrás dela ficara um odor acre de café verde de poeira levantada e de lama revolvida a qual ali na sombra e umidade das árvores não se extingue nunca os dois amigos caminharam algum tempo calados mas uma ânsia de confissão e de abandono os estimulava naquele mundo estranho e eles 12707_10229_000057 pacifica do homem tudo se confunde se mistura e se repele num torvelinho de desespero a sombra do passado penetra demasiado na morada do homem moderno e enche-lhe a casa de espectros e visões que o detêm e o perturbam e o futuro mensageiro do gesto consolador vem avançando a medo como um ladrão noturno 12707_10229_000058 há seiva para tudo força para a expansão da maior beleza de cada uma toda aquela vasta flora traduz a antiguidade e a vida não se sente nela sombra de um sacrifício que seria o triunfo e o prêmio da morte 12707_10229_000059 razão do meu sangue viajei longamente até agora o mar foi para mim a primeira grande sensação da liberdade sobre ele sonhei e vivi intensamente o gozo do pensamento puro mas não vivi o mar porque não atuei sobre ele e a vida é ação o que cada um de nós procura é tão diverso 12707_10229_000060 entristecer eu vejo na exaltação das tuas palavras que há em nós uma tristeza diversa diante do quadro da vida dos homens mas sempre tristeza e desespero o mal é universal ninguém está satisfeito por estes tempos todos se lamentam e nem senhores nem escravos nem ricos nem pobres nem cultivados 12707_10229_000061 estas de tronco pejado que cinco homens unidos não abarcariam aquelas tão leves e esguias erguendo-se para espiar o céu e metendo a cabeça por cima do imenso chão verde e trêmulo que é a copa de todas as outras 12707_10229_000062 e mirando para o alto e para a frente continuou aqui o espirito é esmagado pela estupenda majestade da natureza nós nos dissolvemos na contemplação e afinal aquele que se perde na adoração é o escravo de uma hipnose a personalidade se escapa para se difundir na alma do todo a floresta no brasil é sombra 12707_10229_000063 social não pode haver sociedade sem ordem como cálculo sem números a harmonia existirá por momentos mesmo num regime de escravos e de senhores mas será instável e sem a liberdade não há ordem possível a busca e a realização da liberdade como fundamento da solidariedade são o fim de toda a existência mas para 12707_10229_000064 deve ser forte e querer viver é aquele que um dia atinge a consciência de sua personalidade que se entrega a uma livre expansão dos seus desejos aquele que na opulência de uma poesia mágica cria para si um mundo e o goza aquele que faz tremer o solo e que é ele próprio uma floração da força e da beleza esse 12707_10229_000065 em vão não sei quando volto ao meu passado é ainda esse trecho do caminho da vida que mais me deleita sinto quanto ele é embalsamado pelo amor que aí passou como esse perfume que foi a minha purificação da adolescência vem até mim e a grande ventura quem sabe foi que sobre essa montanha de fogo formada 12707_10229_000066 cobardia dos homens já fez eterna nela se despertou para exigir de mim a minha escravidão encontrou apoio nos preconceitos cristãos de meu pai nos escrúpulos e temores de minha mãe que me procurava dissolver ao bafo de sua ternura mórbida resisti o pai de minha amada era um velho general companheiro de armas do meu pai e ele 12707_10229_000067 elas são em si vivas e quentes mas a gradação da sombra que ora avança ora se afasta comunica-lhe da negrura do verde ao desmaio do branco a matização completa triunfal 12707_10229_000068 não me podia vir do nada a minha existência era vagar com os companheiros fortuitos sem saber aonde os meus passos iriam findar vivia vacilante e fugitivo buscando no exterior a calma para o espírito eram passeios intermináveis eternas caminhadas pelas ruas pelos parques da cidade pelos bosques calados 12707_10229_000069 de todo o corpo colossal das folhas novas e das folhas mortas dos troncos verdes e dos troncos carunchosos das parasitas das orquídeas das flores selvagens da resina que se derrama vagarosa ao longo das árvores 12707_10229_000070 extraordinário disse lentz saindo do seu espanto milkau replicou a sensação que aqui recebemos é muito diferente da que nos deixa a paisagem europeia 12707_10229_000071 o esplendor por toda a parte os panoramas do céu passaram a interessar-me profundamente dias inteiros a admirar a limpidez da atmosfera outros a perder os olhos no cristalino do ar outros a sonhar na imensidade das cúpulas azuis límpidas e infinitas que são o espaço vi o mar o pequeno mar do sul da europa 12707_10229_000072 em minha alma jamais desceu o sorriso a brandura a caricia que resfria e que funde e então eu ascendi ascendi aos vinte anos estava tudo acabado a morte dela veio habitar a minha existência e não me consolei longo tempo até que outro amor e esse o grande o único me viesse possuir 13069_13511_000000 quando à tarde abandonada na solidão do exílio à beira da torrente a aragem vespertina vinha gemer em tuas cordas o cântico remoto era como o anseio de um coração opresso ai que se perde confundido com o rojar das cadeias 13069_13511_000001 fragmentos de uma elegia polaca e lentamente muito lentamente por detrás do homem deus avança deslumbrante a beleza e sem vestígios de morte da minha dileta polônia 13069_13511_000002 o meu espírito se ilumina e se expande ao longe transpondo o tempo e o espaço sim eu vejo além por toda a parte miríades de estrelas e flores 13069_13511_000003 agora já te posso dizer como arria se te visse esmorecer no perigo o que ele disse levando o punhal ao peito poe us non dolet o tumulto o som confuso das armas o tropear dos soldados não me deixaram ouvi-la mais 13069_13511_000004 em todos os tempos a poesia tem sido a expressão dos sentimentos profundos da humanidade chora com as suas dores e é ela que vai ao sepulcro das nações proferir o surge et ambula a raça suplantada pela pressão dos déspotas 13069_13511_000005 não queria redobrar o meu sofrimento oh meu poeta foi então que me convenci de que o homem é o lobo do homem pior ainda que o lobo cerval porque espia os segredos da nossa alma 13069_13511_000006 disse-me ela a abraçar-me frenética louca quando nos separaram mal que chegamos as minas da sibéria os meus companheiros do infortúnio não os tornei mais a ver hedwige foi condenada ao trabalho das minas de mercúrio muito longe não soube mais dela 13069_13511_000007 era impossível resistir todo o esforço seria inútil deixei passivamente algemarem-me um olhar firme de hedwige inspirou-me uma resignação indizível 13069_13511_000008 sempre lucrecia e virginia ensinaram me também a ser forte um dia karl eu sinto que neste instante nos une um amor mais alto e desinteressado que nada tem das paixões terrenas dá-me o abraço que há de fundir numa só as nossas almas para sempre 13069_13511_000009 eis que a este ruido misterioso visões estranhas me aparecem o canto de triunfo soltando-se do peito de milhões de homens ressoa em derredor os vencedores passam em falanges inumeráveis eu vejo as brancas resplandecentes figuras das irmãs e dos irmãos libertados da escravidão 13069_13511_000010 hedwige escutou impassível custava-me tanto vê-la sofrer em silêncio ela fazia um esforço inaudito para não vergar com as dores excessivas 13069_13511_000011 éramos como aqueles crentes dos primeiros séculos do cristianismo tínhamos a sede do martírio a noite da conjuração era tempestuosa como os pensamentos que nos agitavam 13069_13511_000012 um dia apareceu-nos um poema estranho novo um grito ansioso em que se exalava uma alma pareceu- nos a voz da polônia que nos chamava em seu desalento sentimo-nos fortes no primeiro impulso 13069_13511_000013 ela para sobre os umbrais da sião prometida a todos os povos e destas alturas sagradas sua voz retumba dirigindo-se as nações reunidas muito longe lá em baixo nos términos do espaço a mim 13069_13511_000014 a liberdade da polônia fôra o único ideal de sua inspiração é ela sempre que transluz nas maravilhas com que enriqueceu a literatura polaca nos salmos do futuro no iridion na comédia infernal e na tentação a que anda ligado este fato que narramos 13069_13511_000015 harpa sacrossanta orvalhada pelas lágrimas dos videntes que repousam sobre ti frontes encanecidas banhadas no pranto do cativeiro 13069_13511_000016 estava já acostumado à obscuridade um dia começou a lembrança de hedwige a ocupar-me a imaginação seria uma saudade viva algum pressentimento lembrar-se-ia ela também de mim nesse instante 13069_13511_000017 julguei-a uma aparição angélica que baixava para trazer-nos a palma do martírio a anunciar os transes deste horto em que estávamos recordando as agonias da polônia 13069_13511_000018 continuei a trabalhar com mais afan na direção donde vinham os sons abafados encontramo-nos dias depois que alegrias que abraços íntimos entre aqueles sócios da desgraça se estivesse ali hedwige que fatalidade o meu desejo era o pressentimento 13069_13511_000019 hedwige tinha-me expirado nos braços soltara a alma cândida acrisolada nas tribulações no último beijo que recebeu de mim daí por diante a vida pareceu-me mais impossível de suportar eu não vivia vegetava como o líquen no fundo de uma caverna escura 13069_13511_000020 entraram na sala sombria como uma onda turbulenta que irrompe derrubando os diques e se precipita como um vértice fremente as armaduras reluziam e nos causavam a vertigem do terror um frio letal escoou-se por mim lembrou-me lutar para defendê-la 13069_13511_000021 pobre karl ainda tenho aqui a carta em que ele me conta os trabalhos da jornada para o desterro de um estudante de lithuania ao poeta anônimo da polônia 13069_13511_000022 admirava-me de ver ali crianças filhos dos desgraçados obreiros raquíticos enfezados não conheciam a luz do mundo a vida resumia-se no trabalho insano 13069_13511_000023 a imbecilidade proveniente da atonia e dos pesares indescritíveis prolongara-me a existência vegetativa lembrava-me de minha mãe se a tornaria a ver ainda estaria ela já no sepulcro ralada com a saudades da ausência cansada de esperar a volta do cativeiro 13069_13511_000024 ela lançou mão do poema que estava sobre a mesa e começou a recitar algumas das estrofes mais arrebatadas com uma voz profética no tom misterioso de uma sibila a magia daquela voz sentida prendia ficaram imóveis quedos escutando-a 13069_13511_000025 não me custava a vida mas tê-la a meu lado ali vê-la sujeita a irrisão e malvadez dos que vinham para prender-nos pobre edwidge 13069_13511_000026 porque o coração do homem nunca sofreu tanto para descobrir uma expressão para este infinito da angústia hedwige nem se atrevia a olhar para mim depois vi-a cair transida de frio e cansaço esgotara o ultimo esforço 13069_13511_000027 pedi para leva-la aos meus ombros era a loucura e egoísmo do amor que fazia com que a conduzisse para sentir ainda agonias mais violentas que a morte oh antes me deixasses sepultada na solidão dos estepes exposta ás aves noturnas do que vermo nos agora separados para sempre 13069_13511_000028 julgava a já morta criança e débil como era sem hedwige para que queria eu a vida oh se a visse ainda uma vez morreria contente resignado perdoando tudo quanto os que se dizem meus semelhantes me fizeram sofrer 13069_13511_000029 e de minha mãe a quem não pude dizer ao menos o extremo adeus me davam a consciência de que ainda vivia mas não podia aliviar-me com as lagrimas os que me viam nunca se atreveram a perguntar qual o meu crime não sei que esperança me prendia a vida para que me não despedaçasse contra as rochas que ia arrancando 13069_13511_000030 reinava um silencio de morte já sabíamos a sorte que nos esperava depois vieram lançar nos as cadeias pesadas as gargalheiras infamantes da escravidão ultrajando com risos aquele sentimento puro que nos dava constância para o martírio 13069_13511_000031 e eu continuei a viver para ver prolongados a miséria e os flagícios incríveis que me cercavam já não tinha o amor que alimentava nas horas da minha solidão hedwige 13069_13511_000032 tive horror do ente que amava era só a compaixão que me prendia a ela lembras-te das palavras de simeão quando na apresentação do templo viu o messias em seus braços hoje digo-te o mesmo karl já posso morrer 13069_13511_000033 não sei que aparência divina que irradiação sublime etérea envolvera o rosto da minha amada que os soldados não se atreviam a aproximar-se seria esse terror que fazia cair em terra fulminados os que tocavam na arca sacrossanta 13069_13511_000034 que tristeza profunda o lembrar-me que o meu poema a tentação exaltando os estudantes da lithuania para sacudirem os tiranos fez com que os opressores arrojassem para os estepes e minas da siberia a flor da mocidade da polônia 13069_13511_000035 estudávamos em lithuania uma noite reunimos para ler o poema brilhava em cada rosto um lampejo de cólera e esperança cada estrofe era um sobressalto a ansiedade do sacrifício 13069_13511_000036 pela enormidade das injustiças acumuladas sobre ti conservavas constantemente o inimigo debaixo do raio de deus no transe do martírio tiravas de teu coração uma vida mais enérgica que a dos teus opressores 13069_13511_000037 mas tornava a aparecer a luz do mundo para mais provações e dores porque minha mãe estava morta a pátria o que ainda me fazia palpitar o coração com vida vejo-a esquecida inerte sob o jugo prepotente da rússia 13069_13511_000038 a centelha da imortalidade faísca de todas as frontes mesmo sem asas eles vogam no ar como se fossem alados sem coroas brilham como se fossem coroados 13069_13511_000039 a mim oh vós raças fraternas a última luta do derradeiro combate terminou os embustes das traições e das mentiras terrestres estão destruídos subi comigo para o reino da paz 13069_13511_000040 a lividez do sepulcro no semblante desbotado parecia-me a flor mimosa emurchecida com as geadas da noite as pancadas do knut 13069_13511_000041 quando nos abraçamos como irmãos na mesma crença para os transes mais dolorosos correram as lágrimas ferventes como nos momentos rápidos de uma despedida para sempre 13069_13511_000042 ficámos suspensos esperando o hino que havia romper dos lábios selados por um mistério profundo como deixou ela a casa de seus pais nas sombras da noite medonha como soube onde estávamos quem a trouxe aqui foram o amor esta iluminação da segunda vista 13069_13511_000043 já te esqueceste de mim senti um abraço sem vigor fitei nas sombras o vulto que me falava e me estreitava a si era ela lívida desconhecida com a magreza da consumpção o mercúrio penetrara-lhe a parte esponjosa dos ossos 13069_13511_000044 ela abraçou-me e sorriu-se tens medo vejo te tão pálido receias que eu não tenha coragem para corresponder á tua bravura eu sou mulher é verdade era ao suspiro de uma mulher que a liberdade romana acordava sempre 13069_13511_000045 ao menos que o teu ultimo arranco afaste para bem longe o bando dos abutres selvagens que pairam sobre ti prometheu algemado em terra mas que ainda nas convulsões da agonia mostra a animação do fogo divino da liberdade 13069_13511_000046 e o coro das nações lhe responde benção e glória a ti oh polônia porque ainda que tenhamos todas sofrido tu suportaste mais tormentos que nenhuma de nós 13069_13511_000047 havia um silêncio augusto parecia que o céu e a terra escutavam o nosso juramento que a pátria agrilhoada interrompera os lamentos para escutar a voz consoladora de seus filhos que esperavam o dia da redenção foi então que ela apareceu 13069_13511_000048 já sobre o túmulo da polônia e não havia senão eu eu cadáver que faltava entre os ressuscitados oh através dessas grades e destes muros que me fecham como as tábuas de um féretro 13069_13511_000049 sem sucessos nem distrações que me preocupassem a vida cada momento parecia-me um século de desesperação estes doze anos foram uma outra existência quando voltei à pátria julguei um renascimento 13069_13511_000050 as rajadas do inverno eram cortantes e tiravam-nos todo o vigor para avançar depois vieram amontoando-se os gelos e nos obrigaram a prosseguir a pé 13069_13511_000051 naquela elevação surpreendente a comoção embaraçou lhe a voz não pôde falar ficou hirta lívida como na concentração violenta do êxtases 13069_13511_000052 desde os profetas de israel e tyrteu e callino até rouget de lisle kerner e poetefi a poesia tem dirigido as revoluções é como a coluna de fogo que leva à terra prometida através dos errores do deserto 13069_13511_000053 pátria pátria és a túnica inconsútil sobre que rodam os dados do infortúnio polônia tu és o peito exangue ferido pela lança do incrédulo pudesse o teu sangue dar a vista ao que te fere com mão obstinada 13069_13511_000054 era uma loucura esta ideia e continuávamos silenciosos a romper a mina lôbrega e funda começamos a sentir um eco surdo eram os trabalhadores de outras minas que se encontravam 13069_13511_000055 a lâmpada solitária que alumiava o aposento deixava uma penumbra fantástica e terrível como em um tribunal êmico os olhos coruscavam com brilho de alegrias sanguinárias 13069_13511_000056 e antes que nos inflijam as sevícias do corpo torturam-nos o espírito insultando os sentimentos mais recatados e santos que nos dão coragem nos desalentos da vida partimos todos na carroça dos desterrados um kibitka pior que o tormento inventado para matar o integérrimo atílio 13069_13511_000057 nós éramos crianças animados dos sentimentos mais puros que a idade não deixa contaminar chorávamos de magoa e despeito com vergonha de vermos envilecida sob o jugo obscurante dos czares esta pobre pátria esmagada por um colosso de inercia e barbárie 13069_13511_000058 hoje escrevo-lhe meu poeta porque é a unica pessoa que me resta no mundo e só me prende a vida o juramento que fiz de imola-la no altar da pátria karl 13069_13511_000059 na serenidade altiva que ela mostrava neste instante conheci-lhe uma resolução extrema hedwige queria também ser prisioneira para sofrer comigo as dores do desterro 13069_13511_000060 como ela estava bela radiante era uma profetisa altiva como débora quando proclamava as gentes a lei a sombra das palmeiras entre rama e betel sobre as fronteiras de benjamim e efraim 13069_13511_000061 hedwige proferiu depois de alguns instantes de repouso com a voz entrecortada e tremula ainda é tempo os soldados russos vêm em busca de nós sabem da conjuração e perseguem nos poupemo nos para a hora suprema do resgate 13069_13511_000062 oh mas o que vale ao poeta desterrado contemplar a ruína da pátria para que há de ele pedir a sua harpa um canto de angústia e saudade se aqueles que o escutam e se sentem fortes para lutar com um esforço sobre-humano são depois mártires do sublime entusiasmo 13069_13511_000063 inclina-te agora em meus braços e vibra-me um canto de desespero insofrido eterno para acordar a turba que dorme sob o peso das gargalheiras o vento livre saberá levar a toada longínqua para achar eco no peito dos desgraçados 13069_13511_000064 o mundo regenerado celebra suas núpcias com a jovem liberdade na aresta dos alpes no cimo dos cárpatos o céu resplandece com os raios da mesma aurora e todos os povos unidos confundidos parecem formar um só oceano por sobre o qual é levado o espírito de deus 13069_13511_000065 um látego formado de tiras de couro cru e rosetas de ferro com que verberavam para adiantar caminho esgotaram-lhe as forças eu não sei que haja palavras humanas para exprimir a dor e a raiva que senti neste instante 13069_13511_000066 à medida que ia prosseguindo no canto hedwige como a sulamite dos cantares comparada a torre que olha para o ocidente parecia suspensa o semblante com a graça diáfana de um serafim 13069_13511_000067 o entusiasmo precipitava-nos sentíamos forças de atlante uma audácia e tenacidade para a luta mas via-se ao mesmo tempo em cada rosto a sombra não sei de que pensamento funesto de uma aspiração irrealizável seria uma desgraça iminente 13069_13511_000068 juramos ali com as mãos sobre as estâncias misteriosas que nos vieram despertar do letargo da opressão abnegar do amor da família da vida por esta desgraçada polônia 13069_13511_000069 depois ela veio para mim e abraçou-me ia começar a falar quando se sentiu na rua o estrépito de armas e vozearia de uma soldadesca brutal e desenfreada 13069_13511_000070 era o gênio da polônia incarnado em uma mulher que sofria hedwige ficou silenciosa nem um queixume uma lágrima sequer quando lhe roxearam os pulsos 13069_13511_000071 então vi na obscuridade profunda a luz baça e mortiça das lâmpadas de segurança e uma multidão de homens escaveirados magros era uma cidade de múmias era aquela a minha habitação para doze anos de existência 13069_13511_000072 hedwige a mulher que eu amava o cabelo destrançado pelo vento da noite cansada ofegando sem cores enfiada de susto 13069_13511_000073 a desolação dos estepes por onde passávamos despertava-nos não sei que simpatia talvez porque eram uma semelhança visível do abandono e ruínas em que estavam nossas almas hedwige delicada e frágil não podia caminhar mais via-a desmaiar pouco a pouco 6549_13511_000000 impulsos expansivos da infância dali em diante a vizinha arrogou-se a autoridade absoluta expressa nesta máxima popular quem dá o pão dá o ensino mas a criança tinha um dom que a defendia de todas as atrocidades brutais da prepotência irresponsável era linda linda quantas 6549_13511_000001 distribuía os diminutos ganhos que apurava esta vizinha era como todas as pessoas que rezam muito com a mira no céu e de tal forma se tornam refratárias a todo o sentimento sem afeição a ninguém incapazes de uma generosidade então para as crianças que não compreendem 6549_13511_000002 haver quem nos chame nos fale e nos conte maravilhas e nos esconda no calor benigno de um seio que bate por nós a orfandade e depois quando os primeiros alvores da mocidade começam a doirar-nos a existência a acordar a um tempo todos os sentimentos bons e santos não ter 6549_13511_000003 contemplava era mais um serafim do que uma criatura os olhos tremeluziam-lhe com um fulgor metálico pareciam nunca terem sido empanados pelas lágrimas cantava a toda a hora como um passarinho das balsas mas as cantigas que modulava distraída eram a expressão do segredo mais 6549_13511_000004 sempre entrar em casa cantando mal sabia que a harmonia sonorosa era o ruído de uma grande tormenta a pobre criança sofria muito amava há na vida do coração um momento em que todas as emoções impulsos e sentimentos se alevantam a um tempo e vão ao 6549_13511_000005 pôde voltar a sua aldeia desacompanhado de felicidade sem um único sinal de reconhecimento pelos serviços a esposa que deixara um ano quase depois de casado tinha já morrido deixando uma filhinha na orfandade ela mesma fora crescendo fizera-se mulher com 6549_13511_000006 ela não sabia que estava sozinha no mundo a pomba não tinha a asa maternal sob que se ocultasse quando visse o abutre pairando para arrebatá-la ria descuidada 6549_13511_000007 olhos tão puros e meigos maior que todos os poetas mais do que deus talvez quem soube dar forma ao sentimento daquele coração virginal em uma gota de água uma lágrima caída uma irmã gêmea das que os anjos andam pelo mundo aparando em suas urnas cristalinas para resgatarem 6549_13511_000008 as grandes obras da arte job e prometheu foram os que fizeram sentir no mundo as maiores dores mas a dor moral que os deuses antigos desconheceram a dor muda essa é uma criação do homem o maior inimigo do homem 6549_13511_000009 sabia disto brincava sozinha aprendia a ser mãe que afagos perdidos com a boneca que embalava ao seio que beijava vestia e despia falando com uma ternura que ela adivinhava porque nunca no mundo ninguém lhe havia dado ensinado aos sete anos perdeu seu pai era 6549_13511_000010 como bonifácio oitavo diante da multidão que ia para despedaçá-lo sentado à mesa com a mudez do assombro assim permaneceu a noite toda até que ao outro dia deram com ele regelado cadáver o desespero das imprecações do desgraçado da terra de hus deitado sobre o monturo 6549_13511_000011 exposta aos ventos da noite ao rigor das calmas ao tropel dos que passam banhada de perfumes que ninguém vem a respirar derramados ao capricho das vibrações 6549_13511_000012 amava não pensava senão em perdê-la era tão fácil estava desprevenida não via a traição da onça refalsada onde esperava uma atração irresistível mal haja quem não fala a verdade neste episódio mais santo e verdadeiro de toda a existência a pobre pequena não sabia estas 6549_13511_000013 sem mãe ninguém sabe o que é ver descer a noite negra e as crianças que brincavam conosco caírem de cansadas em um regaço que acalenta ouvir as cantigas que as adormecem e lhes afastam o medo e não saber porque não temos aquilo também não 6549_13511_000014 tanto esperar lembrou-se então a vizinha uma ideia luminosa que a livrou de escrúpulos de consciência e lhe asserenou o ânimo alvoroçado por uma caridade que a sorte lhe impusera a criança tinha ainda um avô do lado materno feitor de uma rica propriedade era a algumas léguas 6549_13511_000015 aldeia muito longe andava na guerra havia quase um ano e ainda não era bem um que estava casado quando voltei já tua avó e a tua mãe tinham morrido não te importam estas cousas tu queres brincar vai correr anda à tua vontade como ela é tão bonita 6549_13511_000016 protegia-a com afã solícito esmerado como um amante cioso de que um átomo impalpável de pó a maculasse em todos os momentos em qualquer parte o velho e a criança agrupavam-se tão bem que a natureza por mais bela e surpreendente era sempre acessória o fundo do quadro 6549_13511_000017 adivinhar seus medos aspirar-lhe os risos unir-se às suas alegrias beber-lhe as lágrimas sem motivo era uma florzinha nascida à beira da estrada 6549_13511_000018 primeiro que os acorda são como os perfumes derramados pela primeira brisa que chega é como um estado nascente da paixão don juan sabia por certo este segredo conhecia o momento em que todas as mulheres se perdem porque se dão ao primeiro que aparece nem ela conhecia porque amava 6549_13511_000019 são mais aterradoras que um mestre de meninos quando a vizinha soube da morte do pescador carpiu deplorou sem saber como subtrair-se ao encargo da abandonada criança se até ali o nímio descuido e desmazelo eram providenciais porque ao menos não vinham atrofiar os 6549_13511_000020 buscador ele e a sua barca desapareceram em uma noite de temporal costumada a vê-lo poucas vezes a criança não deu pela falta esqueceu-se de que tinha pai como se acostumara á falta dos desvelos de sua mãe o pescador quando ia para a costa deixava-a sempre em casa de uma vizinha com quem 6549_13511_000021 guardou para novas provações o pobre soldado não sabia queixar-se por fim como não pudesse dar ao gatilho passaram no para a artilheria aí subiu de ponto a sua infelicidade era uma investida a peça que descarregava esteve quase nas mãos do inimigo era uma 6549_13511_000022 no fim da vida a suavidade dos campos e a tranquilidade da solidão quando se tem sofrido muito cada momento está cheio de saudades da vida porque o sofrimento é o sinal mais certo do que se tem vivido estava pois nesse remanso o velhinho quando no desejo de ver a criança filha de sua filha 6549_13511_000023 recôndito da sua alma lavando na ribeira ao som da água corrente ouviram-lhe uma vez cantar os meus olhos são dois peixes que nadam numa lagoa choram lágrimas de sangue por uma certa pessoa e quem seria essa pessoa a primeira que soube arrancar uma lágrima destes 6549_13511_000024 nem tampouco o impossível que se erguia entre o seu amor e o nascimento desigual daquele que a endoudecera com as palavras balbuciadas tremendo amava o filho do antigo amigo de seu avô dono da herdade em que habitava estúpido uma dessas almas boçais nascidas para deturparem tudo 6549_13511_000025 era uma criança linda linda como os amores os movimentos impensados da infância davam-lhe a cada instante uma nova expressão de candura faziam amá-la beijá-la 6549_13511_000026 investida dos contrários conheceram a prudência do artilheiro mas deixaram no estendido por morto as carretas passaram por sobre ele e fraturaram lhe as pernas pediu debalde aos inimigos que iam de avançada que o acabassem de matar ninguém o ouviu com o estrepito das descargas e do 6549_13511_000027 noturna a luz e sombra formando um brando crepúsculo em que se cisma sonhando alegrias por vir e ilusões que não tornam não se descreve a loucura de júbilo que o velho sentiu ao ver a criança carne da sua carne uma parte da sua alma que reflorescia viçosa no 6549_13511_000028 renovo ria chorava no seu transporte doudo doudo de contente ao beijá-la fitava-a esquecia-se a ver-se naquele retrato a menina dos seus olhos como lhe chamava quando os soluços lhe não embargavam a voz eu não podia morrer sair deste mundo sem te ver 6549_13511_000029 falava como a uma pessoa desenvolvida contava-lhe historias do passado até que adormecia e se esquecia velando ao pé dela horas inteiras o que lhe não contaria o velho na sua simplicidade de justo mutilado como estava das longas batalhas em que entrara perguntava-lhe a criança as 6549_13511_000030 pobre filha como estas plantas que se estiolam e secam mal rebenta o gomo que as há de substituir a mãe morrera ao trazê-la a luz com ela se foram para a cova todos os carinhos que nos embalam e fazem esquecer as dores por onde se nos dá a conhecer a vida 6549_13511_000031 famintos fustigado dos ventos mas ao menos o turbilhão erguia o grito da ameaça o orvalho das noites refrescava-te o ardor da raiva e o oceano consolava-te porque te dizia prometeu mesmo pregado contra essas rochas sabes falar ainda com liberdade 6549_13511_000032 minha filha tu bem sabias isto foram os anjos que to disseram por isso quiseste vir trazes-me o dia mais alegre da minha vida quando tua mãe nasceu foi num dia como este e eu não me alegrei tanto não me lembrava que uma filha é o melhor encanto da velhice estava longe da minha aldeia 6549_13511_000033 acabava por beijá-la muito isto repetido quase sempre ao fim da tarde quando o sol dardejava na aresta da montanha e vinha de longe a toada dolorida e plangente da sineta de uma freguesia próxima a aparência do velho infundia consolação a falta de dentes dera-lhe uma 6549_13511_000034 das sutilezas do pecado foi após os seus sentimentos deixou-se adormecer ao som da voz que a iludia para acordar com a gargalhada fria e insultante no fundo de um abismo onde fora atirada para sempre a alegria que até ali tivera e era a sua principal beleza perdeu-a com a inocência 6549_13511_000035 quem nos descubra e faça pressentir as sarças que nos podem prender as torrentes que nos podem levar os abismos em que se pode cair uma mãe ela nos ensina a amar e nos faz bons com o seu amor e se o amor inconsiderado da gloria nos arrasta 6549_13511_000036 julgava-se o roble secular que protege o arbusto flexível quando as rajadas retouçam na floresta queria penetrar os desígnios da providência que o destinara no declinar dos anos para a guarda deste tesouro de candura o velho à noite sentava a sobre os joelhos 6549_13511_000037 não veem nem sonham senão o mal mesmo no instante em que a linhagem mais intima da candura vem afagar lhes o deserto em que o seu egoísmo as esconde demais ele tinha esta regularidade de feições de uma monotonia que enfada chata insignificativa mas que dizia bem com 6549_13511_000038 se a vertigem de alcançá-la dá coragem para afrontar o impossível sacrificar a vida por um fumo que o tempo dissipa feliz de quem tem uma lágrima na vida que nos ensine o que ela vale para não dá-la por tão pouco mas a pobre criança na sua ignorância ditosa não sabia 6549_13511_000039 humilde havia dias que se casará também com um pobre pescador o velho soldado não quis ir aguar com a sua presença a sociedade dos dois esposos restava-lhe um antigo amigo que ouviu atento as suas calamidades e o convidou para tomar conta de uma rica herdade que possuía ao menos encontrava 6549_13511_000040 coberto de lepra envergonhando-se da luz desejando haver tido o sepulcro por berço e por seio que o escondesse a podridão e os vermes da terra todo este cioso da imensa agonia da alma que se alevanta até deus e na sua fraqueza lhe exproba a desigualdade da luta é uma das mais completas 6549_13511_000041 deus banido os outros deuses feriram-te porque nos alentastes a vida com a esperança se é de força o sofrimento cumpra-se a fatalidade eles não conheciam as dores fundas que se não veem que matam lentamente as dores da alma não as conheciam por isso não as infligiram 4067_3313_000000 posto que o frio fásis ou siene que pera nenhum cabo a sombra inclina o bootes gelado e a linha ardente temessem o teu nome geralmente 4067_3313_000001 queria perdoar-lhe o rei benino movido das palavras que o magoam mas o pertinaz povo e seu destino que desta sorte o quis-lhe não perdoam 4067_3313_000002 poder tamanho junto não se viu depois que o salso mar a terra banha trazem ferocidade e furor tanto que a vivos medo e a mortos faz espanto 4067_3313_000003 já sobre os idálios montes pende onde o filho frecheiro estava então ajuntando outros muitos que pretende fazer uma famosa expedição contra o mundo rebelde porque emende erros grandes que há dias nele estão amando coisas que nos foram dadas não para ser amadas mas usadas 4067_3313_000004 isto dizendo acorda o mouro asinha espantado do sonho mas consigo cuida que não é mais que sonho usado torna a dormir quieto e sossegado 4067_3313_000005 comete-lhe o gentio outro partido temendo de seu rei castigo ou pena se sabe esta malícia a qual asinha saberá se mais tempo ali o detinha 4067_3313_000006 quando tantos matou da ilustre roma que alqueires três de anéis dos mortos toma e se tu tantas almas só pudeste mandar ao reino escuro de cocito quando a santa cidade desfizeste do povo pertinaz no antigo rito permissão e vingança foi celeste e não força de braço ó nobre tito 4067_3313_000007 com ele posta em campo já se via e não vê a soberba o muito que erra contra deus contra o maternal amor mas nela o sensual era maior ó progne crua ó mágica medeia 4067_3313_000008 as espadas banhando e as brancas flores que ela dos olhos seus regadas tinha se encarniçavam férvidos e irosos no futuro castigo não cuidosos 4067_3313_000009 passavam a ajudar na santa empresa o roxo frederico que moveu o poderoso exército em defesa da cidade onde cristo padeceu quando guido com a gente em sede acesa ao grande saladino se rendeu no lugar onde aos mouros sobejavam as águas que os de guido desejavam 4067_3313_000010 que quem da hespéria última alongada rei ou senhor de insânia desmedida há de vir cometer com naus e frotas tão incertas viagens e remotas 4067_3313_000011 e descobrindo os mares inimigos do quieto descanso pretenderam de saber que fim tinham e onde estavam as derradeiras praias que lavavam 4067_3313_000012 porque se eu de rapinas só vivesse undívago ou da pátria desterrado como crês que tão longe me viesse buscar assento incógnito e apartado 4067_3313_000013 este castigador foi rigoroso de latrocínios mortes e adultérios fazer nos maus cruezas fero e iroso eram os seus mais certos refrigérios 4067_3313_000014 leve vencerás da fortuna a força dura que imperador que exército se atreve a quebrantar a fúria da ventura que enquanto desejei-me vai seguindo o que tu só farás não me fugindo pões-te da parte da desdita minha fraqueza é dar ajuda ao mais potente levas-me um coração 4067_3313_000015 ela nos paços logra seus amores as outras pelas sombras entre as flores assim a formosa e a forte companhia o dia quase todo estão passando numa alma doce incógnita alegria os trabalhos tão longos compensando porque dos feitos grandes da 4067_3313_000016 cabeças pelo campo vão saltando braços pernas sem dono e sem sentido e doutros as entranhas palpitando pálida a cor o gesto amortecido 4067_3313_000017 e quando um bom em tudo é justo e santo em negócios do mundo pouco acerta que mal com eles poderá ter conta a quieta inocência em só deus pronta 4067_3313_000018 mas entre tantas palmas salteado da temerosa morte fica herdeiro um filho seu de todos estimado que foi segundo afonso e rei terceiro 4067_3313_000019 ela porque não gaste o tempo em vão nos braços tendo o filho confiada lhe diz amado filho em cuja mão toda minha potência está fundada filho em quem minhas forças sempre estão tu que as armas tifeias tens em nada 4067_3313_000020 honra e alegria uma delas maior a quem se humilha todo o coro das ninfas e obedece que dizem ser de celo e vesta filha o que no gesto belo se parece enchendo a terra e o mar de maravilha o capitão ilustre que o merece recebe ali com pompa honesta e régia 4067_3313_000021 estavas linda inês posta em sossego de teus anos colhendo doce fruto naquele engano da alma ledo e cego que a fortuna não deixa durar muito 4067_3313_000022 mas olha com que santa confiança que inda não era tempo respondia como quem tinha em deus a segurança da vitória que logo lhe daria assim pompílio ouvindo que a possança dos inimigos a terra lhe corria a quem lhe a dura nova estava dando pois eu responde estou sacrificando 4067_3313_000023 aqui dos citas grande quantidade vivem que antigamente grande guerra tiveram sobre a humana antiguidade co'os que tinham então a egípcia terra mas quem tão fora estava da verdade já que o juízo humano tanto erra 4067_3313_000024 com peitas ouro e dádivas secretas conciliam da terra os principais e com razões notáveis e discretas mostram ser perdição dos naturais 4067_3313_000025 com esta a forte arronches sojugada foi juntamente e o sempre enobrecido scabelicastro cujo campo ameno tu claro tejo regas tão sereno 4067_3313_000026 assim também com falsa conta e nua à nobre terra alheia chamam sua qual o membrudo e bárbaro gigante do rei saul com causa tão temido vendo o pastor inerme estar diante só de pedras e esforço apercebido 4067_3313_000027 e os humanos subir ao céu sereno isto bem revolvido determina de ter-lhe aparelhada lá no meio das águas alguma ínsula divina ornada de esmaltado e verde arreio 4067_3313_000028 bela aqui a fugace lebre se levanta da espessa mata ou tímida gazela ali no bico traz ao caro ninho o mantimento o leve passarinho nesta frescura tal desembarcavam já das naus os segundos argonautas onde pela floresta se deixavam 4067_3313_000029 alguns ficam ligados em cadeias por palavras subtis de sábias magas isto acontece às vezes quando as setas acertam de levar ervas secretas 4067_3313_000030 um rei por nome afonso foi na espanha que fez aos sarracenos tanta guerra que por armas sanguinas força e manha há muitos fez perder a vida e a terra 4067_3313_000031 que sinal nem penhor não é bastante as palavras dum vago navegante se porventura vindes desterrados como já foram homens de alta sorte em meu reino sereis agasalhados que toda a terra é pátria pera o forte 4067_3313_000032 assim com firme peito e com tamanho propósito vencemos a fortuna até que nós no teu terreno estranho viemos pôr a última coluna rompendo a força do líquido estanho da tempestade horrífica e importuna 4067_3313_000033 quem viu um olhar seguro um gesto brando uma suave e angélica excelência que em si está sempre as almas transformando que tivesse contra ela resistência 4067_3313_000034 que mimoso choro que soava que afagos tão suaves que ira honesta que em risinhos alegres se tornava o que mais passam na manhã e na sesta que vénus com prazeres inflamava melhor é experimentá-lo que julgá-lo mas julgue-o quem não pode experimentá-lo 4067_3313_000035 pequenos ou vos vesti nas armas rutilantes contra a lei dos inimigos sarracenos fareis os reinos grandes e possantes e todos tereis mais e nenhum menos possuireis riquezas merecidas com as honras que ilustram tanto as vidas e fareis claro o rei que tanto amais agora com 4067_3313_000036 quero que haja no reino netunino onde eu nasci progênie forte e bela e tome exemplo o mundo vil malino que contra tua potência se rebela por que entendam que muro adamantino nem triste hipocrisia val contra ela 4067_3313_000037 este por sua indústria e engenho raro num madeiro ajuntando outro madeiro descobrir pôde a parte que faz clara de argos da hidra a luz da lebre e da ara 4067_3313_000038 desta arte afonso súbito mostrado na gente dá que passa bem segura fere mata derriba denodado foge o rei mouro e só da vida cura 4067_3313_000039 vão-a buscar e mandam adiante que celebrando vá com tuba clara os louvores da gente navegante mais do que nunca os de outrem celebrara 4067_3313_000040 a pálida doença lhe tocava com fria mão o corpo enfraquecido e pagaram seus anos deste jeito a triste libitina seu direito 4067_3313_000041 levantam nisto os perros o alarido dos gritos tocam a arma ferve a gente as lanças e arcos tomam tubas soam instrumentos de guerra tudo atroam 4067_3313_000042 a estas criancinhas tem respeito pois o não tens à morte escura dela mova te a piedade sua e minha pois te não move a culpa que não tinha 4067_3313_000043 entre o remoto istro e o claro estreito onde hele deixou com o nome a vida estão os traces de robusto peito do fero marte pátria tão querida 4067_3313_000044 mas olha um eclesiástico guerreiro que em lança de aço torna o bago de ouro vê-lo entre os duvidosos tão inteiro em não negar batalha ao bravo mouro olha o sinal no céu que lhe aparece com que nos poucos seus o esforço cresce 4067_3313_000045 até os que só a deus onipotente se dedicam mil vezes ouvireis que corrompe este encantador e ilude mas não sem cor contudo de virtude 4067_3313_000046 que bem vê que grandíssimo proveito fará se com verdade e com justiça o contrato fizer por longos anos que lhe comete o rei dos lusitanos 4067_3313_000047 olha tão sutis artes e maneiras para adquirir os povos tão fingidas a fatídica cerva que o avisa ele é sertório e ela a sua divisa 4067_3313_000048 espantado um grande grito senhores caça estranha disse é esta se ainda dura o gentio antigo rito a deusas é sagrada esta floresta mais descobrimos do que humano espírito desejou nunca e bem se manifesta que são grandes as coisas e excelentes que o mundo encobre aos homens 4067_3313_000049 jaz a soberba europa a quem rodeia pela parte do arcturo e do ocidente com suas salsas ondas o oceano e pela austral o mar mediterrâneo 4067_3313_000050 pouco obedece o catual corruto a tais palavras antes revolvendo na fantasia algum sutil e astuto engano diabólico e estupendo 4067_3313_000051 das mãos dos mouros entra a feliz alma triunfando nos céus com justa palma não vês um ajuntamento de estrangeiro trajo sair da grande armada nova que ajuda a combater o rei primeiro lisboa de si dando santa prova 4067_3313_000052 do justo e duro pedro nasce o brando vede da natureza o desconcerto remisso e sem cuidado algum fernando que todo o reino pôs em muito aperto 4067_3313_000053 depois de ter com os mouros superado galegos e leoneses cavaleiros a casa santa passa o santo henrique por que o tronco dos reis se santifique 4067_3313_000054 e se ainda te parece falsidade cuida bem na razão que está provada que com claro juízo pode ver-se que fácil é a verdade de entender-se 4067_3313_000055 assim como a bonina que cortada antes do tempo foi cândida e bela sendo das mãos lascivas maltratada da menina que a trouxe na capela o cheiro traz perdido e a cor murchada 4067_3313_000056 a quem lhe esta vitória permitiu dão louvores e graças sem medida que em casos tão estranhos claramente mais peleja o favor de deus que a gente 4067_3313_000057 entrava a formosíssima maria pelos paternais paços sublimados lindo o gesto mas fora de alegria e seus olhos em lágrimas banhados 4067_3313_000058 olha henrique famoso cavaleiro a palma que lhe nasce junto à cova por eles mostra deus milagre visto germanos são os mártires de cristo 4067_3313_000059 estão de agar os netos quase rindo do poder dos cristãos fraco e pequeno as terras como suas repartindo antemão entre o exército agareno que com título falso possuindo está o famoso nome sarraceno 4067_3313_000060 odoríferos e belos a laranjeira tem no fruto lindo a cor que tinha dafne nos cabelos encosta-se no chão que está caindo a cedeira com os pesos amarelos os formosos limões ali cheirando estão virgíneas tetas imitando as árvores agrestes que os outeiros têm com 4067_3313_000061 põe tu ninfa em efeito meu desejo como merece a gente lusitana que veja e saiba o mundo que do tejo o licor de aganipe corre e mana deixa as flores de pindo que já vejo banhar-me apolo na água soberana 4067_3313_000062 lá onde mais debaixo está do polo os montes hiperbóreos aparecem e aqueles onde sempre sopra eolo e com o nome dos sopros se enobrecem aqui tão pouca força tem de apolo os raios que no mundo resplandecem que a neve está contido pelos montes gelado o mar geladas sempre as fontes 4067_3313_000063 nos saudosos campos do mondego de teus fermosos olhos nunca enxuto aos montes ensinando e às ervinhas o nome que no peito escrito tinhas do teu príncipe ali te respondiam as lembranças que na alma lhe moravam que sempre ante seus olhos te traziam quando dos teus fermosos se 4067_3313_000064 o frecheiro que contra o céu se atreve a recebê-la vem ledo e contente vêm todos os cupidos servidores beijar a mão à deusa dos amores 4067_3313_000065 de cavalos jaezes presa rica de seus senhores mortos cheia fica logo todo o restante se partiu de lusitânia postos em fugida o miralmomini só não fugiu porque antes de fugir lhe foge a vida 4067_3313_000066 pois se os peitos fortes enfraquece um inconcesso amor desatinado bem no filho de alcmena se parece quando em ônfale andava transformado de marco antónio a fama se escurece com ser tanto a cleopatra afeiçoado 4067_3313_000067 assim o quis o conselho alto e celeste que vença o sogro a ti e o genro a este tornado o rei sublime finalmente do divino juízo castigado depois que em santarém soberbamente em vão dos sarracenos foi cercado 4067_3313_000068 se enxergava que por que não passassem sem que nela tomassem porto como desejava pera onde as naus navegam a movia a acidália que tudo enfim podia mas firme a fez e imóbil como viu que era dos nautas vista e demandada qual ficou delos tanto que pariu latona 4067_3313_000069 sinal é de inimigo e de ladrão que lá tão longe a frota se alargasse lhe diz porque do certo e fido amigo é não temer do seu nenhum perigo 4067_3313_000070 correndo lhe dizia ó formosura indina de aspereza pois desta vida te concedo a palma espera um corpo de quem levas a alma todas de correr cansam ninfa pura rendendo se à vontade do inimigo tu só de mim só foges na espessura quem te disse que eu era 4067_3313_000071 já no campo de ourique se assentava o arraial soberbo e belicoso defronte do inimigo sarraceno posto que em força e gente tão pequeno 4067_3313_000072 torna o moço do velho acompanhado que vencedor o torna de vencido egas moniz se chama o forte velho pela leais vassalos claro espelho 4067_3313_000073 vês tavila tomada aos moradores em vingança dos sete caçadores vês com bélica astúcia ao mouro ganha silves que ele ganhou com força ingente é dom paio correia cuja manha e grande esforço faz inveja à gente 4067_3313_000074 e de alguns que trazia condenados por culpas e por feitos vergonhosos por que pudessem ser aventurados em casos desta sorte duvidosos manda dous mais sagazes ensaiados 4067_3313_000075 injuriada tem de roma a fama vencedor invencível afamado não tem com ele não nem ter puderam o primor que com pirro já tiveram 4067_3313_000076 aqui pinta no branco escudo ufano que agora esta vitória certifica cinco escudos azuis esclarecidos em sinal destes cinco reis vencidos 4067_3313_000077 tu também peno próspero o sentiste depois que uma moça vil na apúlia viste mas quem pode livrar-se por ventura dos laços que amor arma brandamente entre as rosas e a neve humana pura o ouro e o alabastro transparente 4067_3313_000078 de áfrica os moradores derradeiros austrais que nunca as sete flamas viram foram vistos de nós atrás deixando quantos estão os trópicos queimando 4067_3313_000079 esta é a ditosa pátria minha amada a qual se o céu me dá que eu sem perigo torne com esta empresa já acabada acabe-se esta luz ali comigo 4067_3313_000080 aquela noite esteve ali detido e parte do outro dia quando ordena de se tornar ao rei mas impedido foi da guarda que tinha não pequena 4067_3313_000081 é dom fuas roupinho que na terra e no mar resplandece juntamente com o fogo que acendeu junto da serra de ábila nas galés da maura gente olha como em tão justa e santa guerra de acabar pelejando está contente 4067_3313_000082 nuas por entre o mato aos olhos dando o que às mãos cobiçosas vão negando outra como acudindo mais depressa a vergonha da deusa caçadora esconde o corpo n'água outra se apressa por tomar os vestidos que tem fora tal dos mancebos há que se arremessa vestido assim e calçado 4067_3313_000083 com pequenas crianças viu a gente terem tão piedoso sentimento como com a mãe de nino já mostraram e com os irmãos que roma edificaram ó tu que tens de humano o gesto e o peito se de humano é matar uma donzela fraca e sem força só por ter sujeito o coração a quem soube vencê-la 4067_3313_000084 nem tão pouco direi que tome tanto em grosso a consciência limpa e certa que se enleve num pobre e humilde manto onde ambição acaso ande encoberta 4067_3313_000085 influiu piedosos acidentes de afeição em monçaide que guardado estava para dar ao gama aviso e merecer por isso o paraíso este de quem se os mouros não guardavam por ser mouro como eles antes era participante em quanto maquinavam 4067_3313_000086 não correu muito tempo que a vingança não visse pedro das mortais feridas que em tomando do reino a governança a tomou dos fugidos homicidas 4067_3313_000087 e vós também ó terras transtaganas afamadas com o dom da flava ceres obedeceis as forças mais que humanas entregando-lhe os muros e os poderes e tu lavrador mouro que te enganas se sustentar a fértil terra queres 4067_3313_000088 lá do germânico albis e do rene e da fria bretanha conduzidos a destruir o povo sarraceno muitos com tensão santa eram partidos 4067_3313_000089 olha que dezessete lusitanos neste outeiro subidos se defendem fortes de quatrocentos castelhanos que em derredor pelos tomar se estendem 4067_3313_000090 na mesma guerra vê que presas ganha estoutro capitão de pouca gente comendadores vence e o gado apanha que levavam roubando ousadamente 4067_3313_000091 qual o reflexo lume do polido espelho de aço ou de cristal fermoso que do raio solar sendo ferido vai ferir noutra parte luminoso e sendo da ociosa mão movido pela casa do moço curioso anda pelas paredes e telhado trêmulo aqui e ali e dessossegado 4067_3313_000092 mandados do rei próprio estudiosos exercitavam a arte e seus ofícios sobre esta vinda desta gente estranha que às suas terras vem da ignota espanha 4067_3313_000093 onde ora as águas nítidas de argento vem sustentar de longe a terra e a gente pelos arcos reais que cento e cento nos ares se alevantam nobremente obedeceu por meio e ousadia de giraldo que medos não temia 4067_3313_000094 dá-lhe combates ásperos fazendo ardis de guerra mil o mouro iroso não lhe aproveita já trabuco horrendo mina secreta aríete forçoso 4067_3313_000095 vês outro que do tejo a terra pisa depois de ter tão longo mar arado onde muros perpétuos edifica e templo a palas que em memória fica 4067_3313_000096 as cidades guardando justiçoso de todos os soberbos vitupérios mais ladrões castigando à morte deu que o vagabundo alcides ou teseu 4067_3313_000097 com gesto ledo a cípria e impudico dentro no carro o filho seu recebe a rédea larga às aves cujo canto a faetontea morte chorou tanto 4067_3313_000098 mas ela os olhos com que o ar serena bem como paciente e mansa ovelha na mísera mãe postos que endoudece ao duro sacrifício se oferece 4067_3313_000099 vista dos barões a presa incerta se fizessem primeiro desejadas algumas que na forma descoberta do belo corpo estavam confiadas posta a artificiosa fermosura nuas lavar se deixam na água pura mas os fortes mancebos que na praia punham os pés de terra cobiçosos 5417_3702_000000 inflamava-se o chalé em conflagrações de entusiasmo se passava algum tempo sem aparecer colavam-se às grades perscrutando a sombra das árvores do quintal carinhas sem conta chupadas de saudade 5417_3702_000001 sonhei ela sentada na cama eu no verniz do chão de joelhos mostrava-me a mão recortada em puro jaspe unhas de rosa como pétalas incrustadas 5417_3702_000002 bem diferente esta exaltação deliciosa do abatimento espavorido da véspera da manhã mesmo na secretaria da instrução pública a expectativa mortal das chamadas uma insignificância o terror acadêmico que nos sobressalta que nos deprime como o que há de mais grave 5417_3702_000003 tirava-se a sorte e segundo o acaso um de nós ou o outro enfiava sem cerimônia as saias de qualquer dama e ia perfeita a toilette do sentimento noivado de chimen desespero de camila 5417_3702_000004 fazendo praça de uma superioridade porque nem sempre zelaram antes da madureza das banhas ângela dominava os a todos vencia os 5417_3702_000005 os arrufos da misantropia as sinuosidades do hipócrita uma estátua de deusa anônima de louça esfolada verde de velhice constituía o auditório 5417_3702_000006 nadava como as toninhas a água azul fugia-lhe diante em marulho ou subia-lhe os ombros banhando de lustre de marfim polido a brancura do corpo dizia as lições com calma dificilmente às vezes embaraçado por aspirações ansiosas de asfixia 5417_3702_000007 três pancadinhas que senti no calcanhar chamaram-me das distrações voltei-me era o meu vizinho da mesa de trás o queixo de ébano que pedia socorro 5417_3702_000008 lembram se do receio infundado de que falei estava de sentinela o companheiro que recolocava a grade até que um aviso do quintal pedisse a corda ofereci me para substituí lo o colega foi dormir 5417_3702_000009 invólucro sutil de um mimo de joelho de perna de tornozelo irremediavelmente desfalcado do espólio glorioso da estatuária pagã calçá-la apenas mas eu a fazia torcer-se calçando a de dores numa tortura ardente de beijos exalando eu próprio a alma toda em chama 5417_3702_000010 a baía do túmulo de águas profundas e sombrias festejada apenas algumas horas pelo sol a prumo em suave tristeza sempre ao longe por uma bocaina a fachada à vista branca da igreja rústica de pamplemousses 5417_3702_000011 estava desenvolvido que diferença do que era há dois anos tinha ideia de haver estado comigo rapidamente no dia da exposição artística 5417_3702_000012 o favor de um gênio benigno que estendia sobre nós a amplidão invisível das asas amor unus erat entrávamos pelo gramal como ia longe o burburinho de alegria vulgar dos companheiros 5417_3702_000013 uma das mãos sobre a face compassando a respiração ciciante no recreio éramos inseparáveis complementares como duas condições recíprocas da existência 5417_3702_000014 pouco se me davam fatos o espírito seduzia talvez por isso fiz a descoberta da sofisma na camarilha incomodando-me a liberdade secreta o rega 5417_3702_000015 virgínia coroada como o capricho onipotente do sol formando em glória os filetes vaporosos que os muladares fumam que um raio chama acima e doura 5417_3702_000016 quando no dia do jantar subi para o dormitório com o egbert dançava-me no espírito reduzida a miniatura a imagem de ema era agradável suprimir o duna pequenina como uma abelha de ouro vibrante e incerta 5417_3702_000017 desprestigiava se a lei salvavam se porém muitas coisas entre as quais o crédito do estabelecimento que nada tinha a lucrar com o escândalo de um grande número de expulsões 5417_3702_000018 na banca de inglês há uns anos reprovava a todos como não dizia se erram escandalosamente no tieitch muito depois apanharam-no consultando os tautphoeus que diabo barão é esse célebre tieitch que tanto se erra 5417_3702_000019 graças ao estudo do outro ano alcancei sofrivelmente o meu atestado de vernaculismo garantido pela competência oficial 5417_3702_000020 amor malandro de gente pobre à beira-mar feito de peixe de ociosidade triste e de calor às vezes era grosseira dialogava ao desafio em chacota desbocada com quem quisesse 5417_3702_000021 armava-se o biombo do silvino grande caixão de pinho a meia altura do teto com uma porta e uma janela de palmo quadrado donde saiam emanações de roupas suadas e várias outras cheiros indecifráveis de pouco asseio 5417_3702_000022 o tremendo catão das bolas pretas terror universal dos bichos o diretor recebeu-me da instrução com um abraço contrafeito de estilo percebi que ainda escorria a fístula dos ressentimentos 5417_3702_000023 estes intervalos de dormência sem sonho sem idéias sem definida cisma eram o meu sossego pensar era impacientar me que desejava eu sempre o desespero da reclusão colegial e da idade 5417_3702_000024 um o mais velho de todos cadavérico ar de cristo tinha a barba rente pretíssima como um queixo de ébano adaptado a uma cara de marfim velho 5417_3702_000025 o seu diretor é que os compreende quando entra aqui é uma onça o próprio teto branco empalidece levantam-se saúdam o soberano agora há homens respeitáveis o velho moreira o simpático ramiro de sorriso patriarcal 5417_3702_000026 almas que se encontram dois coqueiros esbeltos crescendo juntos erguendo aos poucos o feixe de grandes folhas franjadas ao calor da felicidade e do trópico compreendíamos os pequeninos amantes de um ano confundidos no berço no sono na inocência 5417_3702_000027 o simas da mesa de geografia um pançudo apelidado esfera terrestre mimoseiem-se no com um par de galos de briga o barros andrade comprem-lhe os pontos aquele diabo da retórica que me bombeou há dias falem-lhe nos versos que não há suíças mais amáveis 5417_3702_000028 e a iminência constritora do austro da catástrofe a lua cruenta de presságios sobre um céu de ferro e guardávamos do livro cântico luminoso de amor sobre a surdina escura dos desesperos da escravidão colonial 5417_3702_000029 luto de paulina ambição de agripina soberania de ester astúcia de elmira dubiedade de celiméne outro papel custoso de distribuir era o de burro papel honesto entretanto e altamente simpático 5417_3702_000030 investiam se dos diversos caracteres convictamente os mancebos explorando o momento efêmero da pele novidade tenra do semblante como elemento de artifício deleitando se no engano tomando a peito a caricatura da sensualidade 5417_3702_000031 que eu prezaria com todos os defeitos com todas as máculas na facilidade de perdão das cegueiras sentimentais estranhezas da preferência que envolve tudo no ser querido a frase límpida do olhar ou o cheiro acre mesmo impuro da carne 5417_3702_000032 conhecido uma vez antes da emigração para sempre canções da ilha em que se ouvia murmúrio do oceano calmo e das brisas viajadas e o grito angustiado das gaivotas e a celeuma longe da maruja à faina acompanhando um estribilho insistente de amor 5417_3702_000033 preferiam as noites escuras que têm mais estrelas e mais segredo e preferiam as noites de chuva que em questão de fresco são decisivas 5417_3702_000034 empossado no seu grande orgulho que mesmo em casa fazia valer aristarco presidia tão alto porém e tão longe que dir-se-ia um ausente 5417_3702_000035 todas as idades todos os colégios representados além dos estudantes avulsos de aulas particulares em cujo número se confundiam caras suspeitas de farroupilhas exemplares definidos de vagabundagem 5417_3702_000036 olhávamos para cima para o céu que céus de transparência e de luz ao alto ao alto demorava-se ainda em cauda de ouro uma lembrança de sol a cúpula funda descortinava-se para as montanhas diluição vasta tenuíssima de arco-íris 5417_3702_000037 toda a crônica obscura do ateneu redigia se ali em termos explícitos e fortes expurgada dos arrebiques de recato de inverdade pelo escrúpulo das comissões investigadoras 5417_3702_000038 quando ouvi-lhe o nome à chamada dos comprometidos no processo sofri como a surpresa de um golpe desesperou-me não achar o meio de compartir com ele a vergonha qual a espécie de cumplicidade que se atribuía 5417_3702_000039 e fazia-me estremecer a ideia de que iam maltratar criatura tão mansa tão complacente tão amável feita de sensibilidade e brandura contra quem o mal seria sempre uma injustiça 5417_3702_000040 eu lamentava que uma ocorrência terrível não viesse de qualquer modo ameaçar o amigo para fazer valer a coragem do sacrifício trocar-me por ele no perigo perder-me por uma pessoa de quem nada absolutamente desejava 5417_3702_000041 convidado egbert força era que o fosse eu também e o fui de má vontade por fórmula cumpria-me forjar pretexto e recusar o convite mas atraía-me certo número de curiosidades por exemplo ver como comia a melica 5417_3702_000042 o ateneu de raul pompéia capítulo nove a anistia dos revolucionários aproveitou por extensão aos execrandos réus da moralidade 5417_3702_000043 como se bebesse a realidade do movimento humano nos países remotos que os cosmoramas pintam em que vagamente acreditávamos como se acredita em romances 5417_3702_000044 adquirira-o com a transição para as aulas secundárias onde o encontrei com outros adiantados vizinhos de banco compreendemo-nos mutuamente simpáticos como se um propósito secreto de coisa necessária tivesse guiado o acaso da colocação 5417_3702_000045 nós dois sós sentávamo nos à relva eu descansando a cabeça aos joelhos dele ou ele aos meus calados arrancávamos espiguilhas à grama o prado era imenso os extremos escapavam já na primeira solução de crepúsculo 5417_3702_000046 maternalmente suavemente de tal modo que me prendia a vivacidade também prendia-me todo como se eu existisse apenas naquela mão retida depois da interrupção de aristarco não sei mais nada precisamente do que se passou na tarde 5417_3702_000047 de volta ao ateneu senti-me grande crescia-me o peito indefinivelmente como se me estivesse a fazer homem por dilatação sentia-me elevado vinte anos de estatura um milagre 5417_3702_000048 os dois da noite contaram malheiro era o chefe da troça uma troça de nove muito discretos muito hábeis também quem traísse apanhava 5417_3702_000049 auditório atento fixamente comedido sem demasias de aplauso nem reprovação mas constante e infatigável para o desempenho dos papéis femininos havia dificuldades cada um queria a parte mais enérgica do recitativo 5417_3702_000050 compromissos de linha reta não sei como diga razões velhas de vaidade vertebrada aversão ao subterfúgio ou talvez um medo que me ocorreu por último sem fundamento fosse uma vez e de volta não achasse mais a corda para subir 5417_3702_000051 do egbert fui amigo sem mais razões que a simpatia não se argumenta fazíamos os temas de colaboração permutávamos significados ninguém ficava a dever entretanto eu experimentava a necessidade deleitosa da dedicação 5417_3702_000052 um sexagenário encanecido e helicoidal cara lambida de padre cabelos brancos ondeando pelos ombros em bossa sobrecasaca ilimitada riscando o chão a cada passo 5417_3702_000053 donde saia mais durante a noite crescendo decrescendo um roncar enorme fungado de narigudo os rapazes furavam orifícios com verrumas para espiar e tinham achado a legenda do silvino 5417_3702_000054 revivíamos o idílio todo instintivo e puro virginie ele será heureuse animávamo-nos da animação daquelas correrias de crianças na liberdade agreste 5417_3702_000055 silvavam os apitos atacavam-se os estudantes com os carroceiros a sopapos de ida e volta segundo o belo costume do tempo prestavam-se os exames numa grande sala de muitas janelas 5417_3702_000056 graças também as tinturas de latim em que me iniciara o padre mestre frei ambrósio respeitável de nariz entupido gesticulando com o 5417_3702_000057 as janelas abertas para o quintal do diretor eram fortemente gradeadas de madeira por entre as travessas olhávamos ângela fazia-se menina para brincar e correr com vivacidades de gata rolava no chão envolvendo a cara nos cabelos secos soltos 5417_3702_000058 se tem um empenho fura se não tem babau bancas de peixe o peixe é caro às vezes mas é sempre peixe de mercado olhe o meireles da filosofia aquele compridão de barba russa o empenho é a ritinha pernambucana da rua dos arcos 5417_3702_000059 dormia no chalé o famoso rômulo ocupava a cama inteira de ferro com a fartura de ádipo e ressonava no extremo oposto do salão com a mesma intensidade que o silvino falava fino o diabo e roncava grosso era um dos tais da troça do malheiro 5417_3702_000060 chovia potes tanto melhor a injúria que o sangue não lava bem pode lavar uma ducha de enxurro estava vingado 5417_3702_000061 chamavam me a mim sérgio do alves fazia-se a critica dos novos sob um ponto de vista inteiramente deles apostavam a ver quem seria primeiro exigiam o juramento de segredo para passar adiante uma história que tinham por sua vez jurado não contar a ninguém 5417_3702_000062 havia o que afetava moderação no capricho conhecendo o desvio em regra como o ladrão sabe ser honesto no roubo com o ar sério espantadiço das femmes qui sortent 5417_3702_000063 de origem inglesa tinha os cabelos castanhos entremeados de louro uma alteração exótica na pronúncia olhos azuis de estrias cinzentas oblíquos pálpebras negligentes quase a fechar que se rasgavam entretanto a momentos de conversa em desenho gracioso e largo 5417_3702_000064 com estes em contraposição os de orgulho masculino peludos morenos nodosos de músculos largos de ossada e outros mirrados de malícia insaciáveis de voz trêmula e narinas ávidas de bode os gorduchosos de beiço vermelho relaxado 5417_3702_000065 já frouxa a fibra dos rigores aristarco despediu os do gabinete com a penitência de algumas dezenas de páginas de escrita e reclusão por três dias numa sala 5417_3702_000066 plúmbeos de espesso verde sopesando as armas imperiais as formidáveis paredes de alvenaria secular que barbaridade aquela conspiração toda contra mim contra um de todos aqueles perfis rebarbativos contínuos 5417_3702_000067 vinham-me crises nervosas de movimento e eu cruzava de passos frenéticos o pátio sôfrego acelerando-me cada vez mais como se quisesse passar adiante do tempo 5417_3702_000068 os professores eram bons e moderados o de francês m delille nome de poeta aplicado a um urso honrado urso inofensivo e benévolo 5417_3702_000069 doeu-me aquilo como se me houvessem ferido o mais santo escrúpulo de sentimento uma infâmia uma infâmia esta afirmação de coisas improvadas no meio desta temporada de descontentamento tive um dia de prazer prazer malvado mas completo 5417_3702_000070 examinei então os sapatos a ver se haviam crescido os calcanhares nenhum dos sintomas estranhos constatei mas uma coisa apenas olhava agora para egbert como para uma recordação e para o dia de ontem 5417_3702_000071 entre as vidraças e os lugares que eram destinados aos examinandos ficava a mesa examinadora à direita um velho calvo baixinho de alouradas cãs rodeando a calva em franja de dragonas barba da cor dos cabelos 5417_3702_000072 além destes enchia se o saguão da escada com a turbamulta dos assistentes confusão de fardetas fraques surrados sobrecasacas 5417_3702_000073 no outro dia apareceu o gorducho entanguido encatarrado furibundo em chinelos sem meias calças camisas de náufrago miserando cercado pelo espanto de todos e pela galhofa 5417_3702_000074 das classes inferiores havia quem fizesse empenho em mudar para a terceira no ambiente torvo da intriga insinuava se o vaivém silencioso das ficções drama joco sério dos instintos em ilusão convencional e grosseira 5417_3702_000075 uma parede vidraçada em toda a altura de vidros opacos de fumaça cor de pergaminho coava para o interior um crepúsculo fatigado amarelento que pregava máscaras de icterícia às fisionomias 5417_3702_000076 ah o passeio livre no jardim as grades abertas do cárcere forçado mas uma hesitação prendia me de compromissos antigos comigo mesmo 5417_3702_000077 e por ocasião das provas de francês já não era estreante a estréia do primeiro exame foi de fazer febre três dias antes pulavam me as palpitações 5417_3702_000078 eu mais o prezava nos acessos doentios da angustia sonhava que ele tinha morrido que deixara bruscamente o ateneu o sonho despertava me em susto e eu com alívio avistava o tranquilo na cama próxima 5417_3702_000079 pus-me a pensar nas primeiras leituras de camões no sanches nos banhos da natação na maneira de rir de ângela no criado assassinado no processo do assassino que fora julgado havia pouco 5417_3702_000080 além da data memorável do francês muito passeamos pelas avenidas de sombra chateaubriand corneille racine molire o teatro clássico dava para grandes efeitos de declamação 5417_3702_000081 o professor mânlio animava a animação lembrando o perigo assustava mais esmagava-me por antecipação o peso enorme da bastilha da rua dos ourives como os tribunais ferozes sem apelo a terrível campainha penetrante da abertura da solenidade os reposteiros 5417_3702_000082 eu fazia esforços para colher a mão e beijar a mão fugia chegava-se um pouco escapava para mais alto baixava de novo fugia mais longe ainda para o teto para o céu e eu a via inatingível na altura clara aberta como um astro 5417_3702_000083 tudo que na primeira classe e na segunda era extraordinário ali era normal e corrente todas as idades desde o cândido até o sanches 5417_3702_000084 a companhia do egbert ultimava a situação e o estudo era uma festa o professor venâncio lecionava também inglês escapei-lhe às garras felizmente uma fera chatinho sob o diretor terrível sobre os discípulos 5417_3702_000085 ramalhetes à mesa um caldo ardente e sempre a obsessão adorável do branco e a rosa vermelha estava a meu lado pertinho deslumbrante o vestuário de neve 5417_3702_000086 daí começou a esfriar o entusiasmo da nossa fraternidade fim do capítulo nove 5417_3702_000087 chandler chasqueava se a palavrões alguns rapazes de sorrisos frouxos sem expressão maneiras reles arrebitavam para o alto com as costas da mão chapéus de palha suja e passeavam gingando 5417_3702_000088 não o conhecia vi-o magro anguloso feio olhando com ferocidade contínua não se sabia felizmente para quem porque era estrábico por ele começou o meu improvisado informante e conhecendo que eu andava atrasado a respeito não me deixou mais 5417_3702_000089 outras vezes subíamos ao duplo trapézio embalávamo-nos primeiro brando afrontando a carícia rápida do ar pouco a pouco aumentava o balanço e arriscávamos loucuras de arremesso assustando o ateneu 5417_3702_000090 saudoso do terceiro império cujo desastre o deportara para a vida de aventuras além mar barbado como um colchão de crinas por um vigor de cabelo denso luxuriante ruivo queimado no lugar da boca 6549_4272_000000 mas como é que eu murchei as tuas flores minha mãezinha regouga o esposo de bruços no divã manequim nem sequer percebeste a alegoria agora vê se te penteias grichka veste-o depressa anda 6549_4272_000001 alexandrovna sozinha contra todas elas juntas ou contra cada uma em particular e é animada por semelhante pensamento que maria alexandrovna vem ter com a fanácia em mato fé 6549_4272_000002 mas os escândalos da alta sociedade a seu ver tem uma cor muito particular de grandiosidade no gênero do monte cristo e das memórias do diabo finalmente a zina bastar-lhe há mostrar-se 6549_4272_000003 a suspirar e aguenta deus sabe como semelhante provação miserável foste tu que murchaste as flores da minha mocidade abaixa mais essa cabeça não ouves abaixa-te 6549_4272_000004 sobem para a carruagem aphanassi matveich está com uma cara espantada maria alexandrovna dá voltas ao miolo para lhe encasquetar na cabeça e na memoria as recomendações mais essenciais ele porém 6549_4272_000005 cuidas talvez que embelezas assim essa tua cabeça de idiota santo deus que desordem por aqui vai e que cheiro não me dirás miserável donde provém semelhante cheiro 6549_4272_000006 torna-me tu a tratar de mãezinha e muito mais no sitio aonde vamos e ficas sem chá um mês inteiro o marido espavorido nem bole 6549_4272_000007 pechosos da sociedade mais graúda aphanassi matveich estúpido e tremelica cansa a vista a seguir com os olhos as evoluções todas da consorte 6549_4272_000008 mas se me fizerem perguntas não importa calas-te pois sim mas uma pessoa nem sempre pode ficar calado maria alexandrovna responde com monossílabos um hum ou coisa que o valha para que fiquem na persuasão de que és homem espirituoso e que refletes antes de responder hum 6549_4272_000009 eu falarei por ti e tu fazes-lhe a cortesia e mais nada percebeste de chapéu na mão percebi minha mãe maria alexandrovna 6549_4272_000010 embriaguez e a zina há de ser princesa se houver algum escândalo lá por petersburgo ou por moscou entre a parentela do príncipe consolações não hão de faltar 6549_4272_000011 o fiel e zeloso grichka esfrega com quanta força tem o seu barine a quem para mais comodidade agarrou pelo cachaço encostando o para trás no diva 6549_4272_000012 disseste uma palavra só que seja em toda a noite ou amanhã ou no outro dia ou em toda a roda do ano mando-te guardar gansos nem palavra são essas as tuas funções e mais nada entendeste 6549_4272_000013 sente que precisa de desabafar a cólera na pessoa de aphanassi matveich visto como a sua habitual tirania desandou para si em necessidade e depois toda a gente sabe o acervo de inopinadas grosserias de que são capazes longe das vistas dos mirones uns certos entes delicados 6549_4272_000014 uma vez no campo vire-se tudo isto pés com cabeça que a mim tanto se me dá é certo que ainda no próprio campo não há tempo para perder tudo poderá acontecer tudo e nessa conformidade maria alexandrovna acha-se resolvida a concluir imediatamente o consorcio 6549_4739_000000 por que acabaremos no primeiro capítulo perguntou ele um amigo não é coisa que se despreze acolhe-se como um presente dos deuses dos deuses disse meneses rindo já vejo que é pagão 6549_4739_000001 que era preciso para derrubar todo este sistema ainda que momentâneo uma coisa pequeníssima um sorriso e dois olhos mas como esses dois olhos não apareciam estêvão entregava-se na maior parte do tempo aos seus estudos científicos empregando as horas vagas em algumas distrações que o não prendiam por muito tempo 6549_4739_000002 e admirava-se de tudo das maneiras das palavras e do tom de afeto que elas pareciam revelar à linguagem do deputado o jovem médico respondeu com igual franqueza 6549_4739_000003 a cabeça pendia-lhe um pouco para a frente pelo longo hábito da leitura mas esses vestígios de uma longa aplicação intelectual não lhe alteraram a regularidade e harmonia das feições nem os olhos perderam nos livros o brilho e a expressão 6549_4739_000004 a sua vocação era toda para as matemáticas que importa disse ele ao saber da resolução paterna estudarei a medicina e a matemática com efeito teve tempo para uma e outra coisa 6549_4739_000005 bem como vai a sua clínica apenas começo disse estêvão trabalho pouco mas espero fazer alguma coisa o seu companheiro na noite em que mo apresentou disse-me que o senhor é moço de muito merecimento tenho vontade de fazer alguma coisa 6549_4739_000006 estêvão hesitou um pouco mas não podia deixar de subir sem ofender o digno homem que de tão boa vontade lhe fazia um obséquio subiram mas em vez de mandar o cocheiro para a rua da misericórdia o deputado gritou joão para casa e entrou 6549_4739_000007 dizendo isto o deputado voltou a cara para o outro lado vendo a chuva que caía na vidraça da portinhola decorreram dois ou três minutos durante os quais estêvão teve tempo de contemplar a seu gosto o companheiro de viagem 6549_4739_000008 família mas nunca será uma mulher esta sentença de estêvão tinha o defeito de certas regras absolutas por isso o padre dizia-lhe sempre tem você razão mas eu não lhe digo que case com a regra procure a exceção que há de encontrar e leve-a ao altar onde eu estarei para os unir 6549_4739_000009 daí a dez minutos parava o coupé à porta de uma casa da rua do lavradio apearam-se os dois e subiram meneses mostrou a estêvão o seu gabinete de trabalho onde havia duas longas estantes de livros 6549_4739_000010 dirá que as obras humanas são imperfeitas e eu não contestarei padre luís mas nesse caso deixe-me caminhar só com as minhas imperfeições daqui engendrava se sempre uma discussão que se animava e crescia até o ponto em que estêvão concluía por este modo 6549_4739_000011 estudo serviu lhe de refúgio e bordão não sabia nada do que era o amor ocupara se tanto com a cabeça que esquecera-se de que tinha um coração dentro do peito não se infira daqui que estêvão fosse puramente um positivista pelo contrário 6549_4739_000012 além disso estêvão tinha ideias singulares havia um padre amigo dele rapaz de trinta anos da escola de fénelon que entrava com telêmaco na ilha de calipso ora o padre dizia muitas vezes a estêvão que só uma coisa lhe faltava para ser completo era casar-se 6549_4739_000013 a alma dele possuía ainda em toda a plenitude da graça e da força as duas asas que a natureza lhe dera não raras vezes rompia ela do cárcere da carne para ir correr os espaços do céu 6549_4739_000014 qualquer que seja a resposta que eu possa obter não recuso aceito que me responde enquanto ele falava eu podia ouvindo-lhe as palavras reunir algumas idéias quando ele acabou levantei os olhos e disse que resposta espera de mim 6549_4739_000015 a veneração agora há de amar-me ainda mas não se recordará do que se passou sem um sentimento de amargura estava nestas reflexões quando entraste lembras-te que me achaste triste e perguntaste a causa disso nada te respondi fomos à casa da tua tia sem que eu nada mudasse do ar que tinha antes 6549_4739_000016 oportunidade de uma tristeza que incomodava a todos mas que me mortificava atrozmente a mim que me fazia causa das suas dores pude falar-lhe em uma ocasião a alguma distância das outras pessoas desculpe-me disse-lhe eu se alguma palavra dura lhe disse compreende a minha posição 6549_4739_000017 daqui muito cedinho tudo isto é preciso notar não está decidido depende de ti o que dizes aprovo a ideia muito bem a carlota pode ir e deve ir acrescentei eu e algumas outras amigas pouco depois recebias tu e outras um bilhete de convite para o passeio lembras-te que lá fomos o que não 6549_4739_000018 isso reparei há pouco que ao passo que os mais conversavam em política você pensava em uma mulher e mulher lindíssima estêvão compreendeu que estava descoberto não negou 6549_4739_000019 não sei por que meu marido revelava-se cada vez mais amigo de emílio este conseguira despertar nele um entusiasmo novo para mim e para todos que capricho era esse da natureza muitas vezes interroguei meu marido acerca desta amizade tão súbita e tão estrepitosa 6549_4739_000020 se soubesse como me faz sofrer não chore eu lhe peço peço-lhe mais peço-lhe que viva oh ordeno-lhe ordena-me e se eu não obedecer se eu não puder acredita que se possa viver com um espinho no coração isto que te escrevo é feio a maneira por que ele falava 6549_4739_000021 lembra-me haver dito que era solteiro é verdade de maneira que os seus cuidados são todos para a ciência é a minha esposa sim a sua esposa intelectual mas essa não basta a um homem como o senhor enfim isso é com o tempo está ainda moço 6549_4739_000022 eis-me na dúvida de hamleto devo ir à casa dela a cortesia pede que vá devo ir mas irei encouraçado contra tudo é preciso romper com estas idéias e continuar a vida tranqüila que tenho tido 6566_5323_000000 as estrelas que guardam a manhã ao verem-me passar triste e calado olhavam-me e diziam com cuidado onde está pobre amigo a nossa irmã mas eu baixava os olhos receoso que traísse as grandes mágoas minhas 6566_5323_000001 no turbilhão a jayme batalha reis no meu sonho desfilam as visões espectros dos meus proprios pensamentos como um bando levado pelos ventos arrebatado em vastos turbilhões 6566_5323_000002 olha a teus pés o mundo e desespera semeador de sombras e quebrantos porém o coração feito valente na escola da tortura repetida e no uso do pensar tornado crente 6566_5323_000003 nem a amazona que se agarra as crinas dum corcel e combate satisfeita a mim mesmo pergunto e não atino com o nome que dê a essa visão que ora mostra ora esconde o meu destino é como uma miragem que entrevejo 6566_5323_000004 no céu ó virgem findarão meus males hei de lá renascer eu que pareço aqui ter só nascido para dores ali ó lírio dos celestes vales tendo seu fim terão o seu começo para não mais findar nossos amores 6566_5323_000005 a criação divina e no meio da noite monstruosa do silêncio glacial que paira e estende o seu sudário donde a morte pende só uma flor humilde misteriosa como um vago protesto da existência desabrocha no fundo da consciência 6566_5323_000006 me vê passar o mar vê-me o rochedo e me contempla a aurora que alvorece sou um parto da terra monstruoso dos húmus primitivo e tenebroso geração casual sem pai nem mãe 6566_5323_000007 filhos ambos do amor igual miragem nos roçou pela fronte que escaldava igual traição que o afeto mascarava nos deu suplício as mãos da vilanagem 6566_5323_000008 na fornalha do estio em dias lentos depois no inverno os sopros violentos lhe revolvam em torno o árido chão 6566_5323_000009 um século irritado e truculento chama a epilepsia pensamento verbo ao estampido de pelouro e obuz mas a ideia é num mundo inalterável num cristalino céu que vive estável tu pensamento não és fogo és luz 6566_5323_000010 daquela primavera venturosa não resta uma flor só uma só rosa tudo o vento varreu queimou o gelo tu só foste fiel tu como dantes inda volves teus olhos radiantes para ver o meu mal e escarnecê-lo 6566_5323_000011 a m c no céu se existe um céu para quem chora céu para as mágoas de quem sofre tanto se é lá do amor o foco puro e santo chama que brilha mas que não devora 6566_5323_000012 como esquece o clarão de extinta chamam foco incerto que a luz já mal derrama tal é essa ventura eco perdido quanto mais se chamou mais escondido ficou inerte e mudo à voz que o chama 6566_5323_000013 ideal aquela que eu adoro não é feita de lírios nem de rosas purpurinas não tem as formas lânguidas divinas da antiga vênus de cintura estreita não é a circe cuja mão suspeita compõe filtros mortais entre ruínas 6566_5323_000014 tese e antítese primeiro já não sei o que vale a nova ideia quando a vejo nas ruas desgrenhada torva no aspecto à luz da barricada como bacante após lúbrica ceia 6566_5323_000015 joaquim de araujo não morrestes por mais que o brade à gente uma orgulhosa e vã filosofia não se sacode assim tão facilmente o jugo da divina tirania 6566_5323_000016 no céu se uma alma nesse espaço mora que a prece escuta e encharga o nosso pranto se há pai que estenda sobre nós o manto do amor piedoso que eu não sinto agora 6566_5323_000017 minha alma ó deus a outros céus aspira se um momento a prendeu mortal beleza é pela eterna pátria que suspira porém do pressentir dá-me a certeza dá-ma 6566_5323_000018 combatei pois na terra árida e bruta té que a revolva o remoinhar da luta té que a fecunde o sangue dos heróis 6566_5323_000019 meus dias vão correndo vagarosos sem prazer e sem dor e até parece que o foco interior já desfalece e vacila com raios duvidosos 6566_5323_000020 e dentre a névoa e a sombra universais só me chega um murmúrio feito de ais é a queixa o profundíssimo gemido das coisas que procuram cegamente 6566_5323_000021 nenhum de vós ao certo me conhece astros do espaço ramos do arvoredo nenhum adivinhou o meu segredo nenhum interpretou a minha prece ninguém sabe quem sou e mais parece que há dez mil anos já neste degredo 6566_5323_000022 dessa coroa é cada flor um engano é miragem em nuvem ilusória é mote vão de fabuloso arcano mas coroa-me tu 6566_5323_000023 sobe do poço eterno em turbilhão a treva primitiva conglobada tu morrerás também um ai supremo na noite universal que envolve o mundo há-de ecoar o teu perfume extremo no vácuo eterno se esvairá disperso 6566_5323_000024 na sua noite e dolorosamente outra luz outro fim só pressentido fim do poema gravado por fernando mendes teresina brasil 6566_5323_000025 não não morreste espectro o pensamento como dantes te encara e és o tormento de quantos sobre os livros desfalecem e os que folgam na orgia ímpia e devassa ai quantas vezes ao erguer a taça param 6566_5323_000026 a ideia encarna em peitos que palpitam o seu pulsar são chamas que crepitam paixões ardentes como vivos soes 6566_5323_000027 mas na imensa extensão onde se esconde o inconsciente imortal só me responde um bramido um queixume e nada mais 6566_5323_000028 outros me causam mais cruel tormento que a saudade dos mortos que eu invejo passam por mim mas como que têm pejo da minha soledade e abatimento 6566_5323_000029 sanguinolento o olhar-se lhe incendeia respira fumo e fogo embriagada a deusa de alma vasta e sossegada ei-la presa das fúrias de medeia 6566_5323_000030 na capela na capela perdida entre a folhagem o cristo lá no fundo agonizava oh como intimamente se casava com minha dor a dor daquela imagem 6566_5323_000031 uma amiga aqueles que eu amei não sei que vento os dispersou no mundo que os não vejo estendo os braços e nas trevas beijo visões que a noite evoca o sentimento 6566_5323_000032 fantasmas de mim mesmo e da minha alma que me fitais com formidável calma levados na onda turva do escarcéu 6566_5323_000033 até que se desfaça e já tornado em impalpável pó seja levado nos turbilhões que o vento levantar com suas lutas em seu cansado anseio 6566_5323_000034 eu amarei a santa madrugada e o meio-dia em vida refervendo e a tarde rumorosa e repousada viva e trabalhe em plena luz depois seja me dado ainda ver morrendo o claro sol amigo dos heróis 6566_5323_000035 clamam em vão e esse triunfo ingente com que a razão coitada se inebria é nova forma apenas mais pungente da tua eterna trágica ironia 6566_5323_000036 evolução fui rocha em tempo e fui no mundo antigo tronco ou ramo na incógnita floresta onda espumei quebrando-me na aresta do granito antiquíssimo inimigo rugi fera talvez buscando abrigo na caverna que ensombra urze e giesta 6566_5323_000037 e agora ali enquanto da floresta a sombra se infiltrava lenta e mesta vencidos ambos mártires do fado fitava nos mudos dor igual nem dos dois saberei dizer vos qual mais pálido mais triste e mais cansado 6566_5323_000038 atravessando regiões austeras cheias de noite e cava escuridão como num sonho mau só ouço um não que eternamente ecoa entre as esferas porque suspiras porque te lamentas 6566_5323_000039 covarde coração debalde intentas opor a sorte a queixa do egoísmo deixa aos tímidos deixa aos sonhadores a esperança vã seus vãos fulgores sabe tu encarar sereno abismo 6566_5323_000040 tu lua com teus raios vaporosos cobre os tapa os e torna os insensíveis tanto aos vícios cruéis e inextinguíveis como aos longos cuidados dolorosos 6566_5323_000041 segundo dorme entre os gelos flor imaculada luta pedindo um último clarão aos sóis que ruem pela imensidão arrastando uma auréola apagada em vão do abismo a boca escancarada chama por ti na gélida amplidão 6566_5323_000042 sonho de olhos abertos caminhando não entre as formas já e as aparências mas vendo a face imóvel das essências entre ideias e espíritos pairando 6566_5323_000043 céus e terra clamai aonde aonde mas o espírito antigo só responde em tom de grande tédio e de pesar 6566_5323_000044 pequenina eu bem sei que te chamam pequenina e tênue como o véu solto na dança que és no juízo apenas a criança pouco mais nos vestidos que a menina 6566_5323_000045 comunhão ao sr joão lobo de moura reprimirei meu pranto considera quantos minha alma antes de nós vagaram quantos as mãos incertas levantaram sobre este mesmo céu de luz austera 6566_5323_000046 muitas ansioso espreito e sigo é um espectro mudo grave antigo que parece a conversas mal disposto ante esse vulto ascético e composto mil vezes abro a boca e nada digo só uma vez ousei interrogá-lo 6566_5323_000047 acordando em sonho ás vezes se o sonhar quebranta este meu vão sofrer esta agonia como sobe cantando a cotovia para o céu a minha alma sobe e canta 6566_5323_000048 mas dum amor que tenha vida não sejam sempre tímidos arpejos não sejam só delírios e desejos duma douda cabeça escandecida amor que vive e brilhe 6566_5323_000049 assim eu vi o mundo e o que ele encerra perder a cor bem como a nuvem que erra ao pôr do sol e sobre o mar discorre 6566_5323_000050 sim vivo e quente e já a luz do dia não virá dissipa-lo o nos meus braços como nevoa da vaga fantasia 6566_5323_000051 e só farte o desejo um bem ausente ai que importa o futuro se incremente essa hora em que a esperança nos consiste chega é presente e só a dor assiste assim qual é a esperança que não mente 6566_5323_000052 ungi as mãos e a face com o nardo crescido nos jardins do oriente a receber com pompa dignamente misteriosa visita a quem aguardo 6566_5323_000053 moças da minha terra ao meu amado correi dizei-lhe que eu dormia agora mas que pode ir contente e descansado pois se tão cedo adormeci conforme é meu costume olhai dormia embora porque o meu coração é que não dorme 6566_5323_000054 e a mim que aspiro a ele a mim que o amo que anseio por mais vida e maior brilho há de negar-me o termo deste anseio buscou quem o não quis e a mim que o chamo 6566_5323_000055 vai-te na asa negra da desgraça pensamento de amor sombra duma hora que abracei com delírio vai-te embora como nuvem que o vento impele e passa que arrojemos de nós quem mais se abraça com mais ânsia 6566_5323_000056 escuta é a grande voz das multidões são teus irmãos que se erguem são canções mas de guerra e são vozes de rebate ergue-te pois soldado do futuro 6566_5323_000057 desventura ou delírio o que procuro se me foge é miragem enganosa se me espera pior espectro impuro assim a vida passa vagarosa o presente a aspirar sempre ao futuro o futuro uma sombra mentirosa 6566_5323_000058 aparição um dia meu amor e talvez cedo que já sinto estalar-me o coração recordarás com dor e compaixão as ternas juras que te fiz a medo 6566_5323_000059 onde te escondes eis que em vão clamamos suspirando e erguendo as mãos em vão já a voz enrouquece e o coração está cansado e já desesperamos 6566_5323_000060 caí e achei-me de repente envolto em luta bestial na arena fera onde um bruto furor bramia solto senti um monstro em mim nascer nessa hora e achei-me de improviso feito fera é assim que rujo entre leões agora 6566_5323_000061 que se exalam da trágica enxovia o eterno mal que ruge e desvaria em ti descansa e esquece alguns momentos oh antes tu também adormecesses 6566_5323_000062 só males são reais só dor existe só males são reais só dor existe prazeres só os gera a fantasia em nada um imaginar o bem consiste anda o mal em cada hora e instante e dia 6566_5323_000063 o convertido entre os filhos dum século maldito tomei também lugar na ímpia mesa onde sob o folgar geme a tristeza duma ânsia impotente de infinito 6566_5323_000064 canta a luz a alvorada a estrela santa que ao mundo traz piedosa mais um dia canta o enlevo das cousas a alegria que as penetra de amor e as alevanta 6566_5323_000065 a glória pois que há nela que adorar fumo que sobre o abismo anda suspenso que vislumbre nos dá do amor imenso esse amor que ventura faz gozar 6566_5323_000066 agora como então na mesma terra erma a mesma humanidade é sempre a mesma enferma sob o mesmo ermo céu frio como um sudário 6566_5323_000067 que és o regato de água mansa e fina a folhinha do til que se balança o peito que em correndo logo cansa 6566_5323_000068 a sulamita ego dormio et cor meum vigilat cântico dos cânticos quem anda lá por fora pela vinha na sombra do luar meio cacoberto sutil nos passos e espreitando incerto com brando respirar de criancinha 6566_5323_000069 chovam lírios e rosas no teu colo chovam hinos de glória na tua alma hinos de glória e adoração e calma meu amor minha pomba e meu consolo dê-te estrelas o céu flores o solo 6566_5323_000070 em viagem pelo caminho estreito aonde a custo se encontra uma só flor ou ave ou fonte mas só bruta aridez de aspero monte e os soes e a febre do areal adusto 6566_5323_000071 então da casta alcova no segredo da lamparina ao trêmulo clarão ante ti surgirei espectro vão larva fugida ao sepulcral degredo 6566_5323_000072 tu que dormes espírito sereno posto a sombra dos cedros seculares como um levita à sombra dos altares longe da luta e do fragor terreno 6566_5323_000073 afronte que ao sofrer logo se inclina mas filha lá nos montes onde andei tanto me enchi de angustia e de receio ouvindo do infinito os fundos ecos 6566_5323_000074 por uma vez e eterna inalterável caindo sobre o mundo te esquecesses e ele o mundo sem mais lutar nem ver dormisse no teu seio inviolável noite sem termo noite do não ser em 6566_5323_000075 vulcões de estranho monte depois que formas vagas vêm defronte que parecem sonhar loucos amores almas que vão por entre luz e horrores passando a barca desse aéreo acheronte 6566_5323_000076 mas que filha de reis que anjo ou que fada era essa que assim a mim descia do meu casebre à humilde pousada nem princesas nem fadas era flor 6566_5323_000077 tinhas de ser assim teus olhos fitos que não são deste mundo e onde eu leio uns mistérios tão tristes e infinitos tua voz rara e esse ar vago e esquecido tudo me diz a mim e assim o creio que para isto só tinhas nascido 6566_5323_000078 um sonho me acordou não sei que tinha pareceu-me senti-lo aqui tão perto seja alta noite seja num deserto quem ama até em sonhos adivinha 6566_5323_000079 a cruz dizia á terra onde assentava ao vale obscuro ao monte áspero e mudo que és tu abismo e jaula 6566_5323_000080 como os outros cuspi no altar avito um rir feito de fel e de impureza mas um dia abalou-se me a firmeza deu-me o rebate o coração contrito 6566_5323_000081 mas a mim não há alta e livre serra que me possa igualar amor firmeza sou eu só sou a paz tu és a guerra sou o espírito a luz tu és tristeza 6566_5323_000082 há outro mais perfeito único eterno farol sobre ondas tormentosas firme de imoto brilho poderoso e terno 6566_5323_000083 ele ao mais pobre de alma há tributado desvelo e amor ele conduz a via segura quem lhe foge e se extravia quem pela noite andava desgarrado 6566_5323_000084 quem és lhe perguntei com grande abalo fantasma a quem odeio e a quem amo teus irmãos respondeu os vãos humanos 6566_5323_000085 podia abrir-te as flores com que veste as ricas e as felizes nesse peito fazer-te o que a fortuna ha sempre feito terias sempre a sorte que tiveste 6566_5323_000086 aonde tudo vive na dor e em luta cega e brava sempre em trabalho condenada escrava que fazes tu de grande e bom com tudo resignada és só lodo informe e rudo revoltosa és só fogo e hórrida lava 6566_5323_000087 só esse hei de buscar e confundir-me na essência do amor puro semi eterno quero só nesse fogo consumir-me 6566_5323_000088 pelo caminho estreito entrei sem susto e sem susto encarei vendo-os defronte fantasma que surgiam do horizonte a acometer meu coração robusto quem sois vós peregrinos singulares 6566_5323_000089 erma cheia de tedio e de quebranto rompendo os diques ao represo pranto virou-se para deus minha alma triste 6566_5323_000090 amortalhei na fé o pensamento e achei a paz na inércia e esquecimento só me falta saber se deus existe fim do poema gravado por fernando mendes teresina brasil 6566_5323_000091 pedindo à forma em vão a ideia pura tropeço em sombras na matéria dura e encontro a imperfeição de quanto existe recebi o batismo dos poetas e assentado entre as formas incompletas para sempre fiquei pálido e triste 6566_5323_000092 o espectro familiar que anda comigo sem que pudesse ainda ver-lhe o rosto que umas vezes encaro com desgosto e outras muitas 6566_5323_000093 noxa noite vão para ti meus pensamentos quando olho e vejo à luz cruel do dia tanto estéril lutar tanta agonia e inúteis tantos ásperos tormentos tu ao menos abafas os lamentos 8655_6390_000000 souza caldas e s carlos como poetas sacros josé bonifácio como sábio e como estadista 8655_6390_000001 quando a morte de seu pai o chamou ao brasil para cuidar dos interesses de sua casa regressando a sua pátria chegou ao rio de janeiro no princípio do ano de mil setecentos e noventa e quatro 8655_6390_000002 aí chegando estudou as matérias preparatórias no real colégio de mafra findos estes estudos seguiu na universidade de coimbra o curso de matemáticas e filosofia 8655_6390_000003 professor historiógrafo geógrafo político administrador parlamentar foi professor do antigo colégio dom pedro segundo e hoje o é de história e geografia no colégio militar 8655_6390_000004 filósofo e moralista pensador profundo e original o marquês de maricá é uma dessas inteligências vigorosas que honram o século em que nasceram e dão nome a uma nação 8655_6390_000005 vasconcellos como legislador e estadista são nomes gloriosos que honram uma nacionalidade e constituem por si só o orgulho de um país 8655_6390_000006 ilustre de pensadores os havia já proclamado na idade de sessenta anos no último período da madureza intelectual depois de ter observado o mundo começou a escrever suas máximas fecundo resultado de longa e esclarecida experiência 8655_6390_000007 consumada a independência pereira da fonseca foi chamado a aparecer em primeira linha na cena pública a par do que havia de mais inteligente no país eram poucas as pessoas habilitadas que possuíamos mas vultos notáveis apareceram então 8655_6390_000008 atlas do império do brasil etc etc o marquês de maricá 8655_6390_000009 glorioso monumento erguido á literatura nacional há como uma vasta síntese das grandes verdades que o espirito humano tem conquistado no decurso dos séculos o resultado de profundas meditações de uma experiência refletida de observação 8655_6390_000010 missão dentro da minha campa o ouvirei do eco da posteridade a palidez da morte pousava já em seu cadavérico semblante o lume de seus olhos apagara-o a vigília de todas as horas podia morrer 8655_6390_000011 no meio dessa grande geração de sábios notáveis que abrem os anais do século dezenove no brasil destaca-se um vulto venerando que legou a posteridade seu nome em um monumento imorredouro 8655_6390_000012 eminentemente religioso nenhuma parte teve nas crises que agitaram seu país conquistou as mais elevadas posições sociais de sua pátria não por efeito de intrigas ou de meios tortuosos sim pelo seu merecimento inteligência e probidade e libado 8655_6390_000013 nessa fronte rugosa o perpassar dos anos depusera o selo da sabedoria em seus lábios severos e contraídos pousava a verdade em seus olhos quase amortecidos transparecia a luz da reflexão 8655_6390_000014 como são solenes estas palavras que o ilustre sábio estampou nas últimas páginas de seu livro imortal como o seu testamento literário depois de impressos vários volumes das minhas máximas continuo a escrever sem esperança 8655_6390_000015 alguma coisa de grandioso e solene no espetáculo desses cenobitas da ciência que se retraem à solidão para consagra-se ao culto da verdade como esses obreiros sepultados no fundo das minas de ouro que enviam à terra tesouros 8655_6390_000016 acaba a pátria cheia de agradecimentos legados como esse eduque se a nova geração nesses princípios de uma moral pura que aí estão escritos nesse grande livro e no exemplo de uma sociedade regenerada pela palavra inspirada 8655_6390_000017 mariano josé pereira da fonseca nasceu no rio de janeiro no dia dezoito de maio de mil setecentos e setenta e três filho legítimo do negociante domingos pereira da fonseca e sua mulher d thereza maria de jesus 8655_6390_000018 havia em sua austera fisionomia a expansão de uma alma pura e de um espírito elevado nessa cabeça cingida por uma coroa de cabelos brancos agitavam-se grandes pensamentos 8655_6390_000019 homem de mello chegou em mil oitocentos e oitenta a ministro do império fazendo parte do gabinete de vinte e oito de março 8655_6390_000020 admira-se sobretudo o aticismo da linguagem a limpidez do estilo a correção e severidade de formas que revestem os seus pensamentos algumas vezes uma mesma verdade como companheira fiel revoava em torno do seu 8655_6390_000021 que nunca gozarão é um livro monumental esse em cujas páginas o coração se expande ao aroma suave da virtude sem que nas máximas de uma ciência vã se desbote a flor delicada do sentimento 8655_6390_000022 e fez logo parte da academia científica que fora fundada nesta cidade em mil setecentos e setenta e dois sob os auspícios do ilustrado vice-rei marquês do lavradio 8655_6390_000023 uma vez pago o seu tributo á causa da organização politica do seu país o marquês de maricá cedendo ao pendor de suas naturais inclinações pareceu retrair-se a solidão para entregar-se as suas profundas meditações 8655_6390_000024 e que tão úteis serviços prestou ás letras promovendo a indústria da cochonilha no brasil e outros melhoramentos importantes 8655_6390_000025 e cumpre dizer que os primeiros talentos da época com raras excepções foram aproveitados na governação do estado já experimentado na administração e de reputação firmada esse ilustre brasileiro foi chamado ao ministério da fazenda em treze de novembro 8655_6390_000026 duvidas do espírito humano só a religião fecha as feridas do ceticismo com o bálsamo salutar de uma santa crença tal era o marquês de maricá apesar de algumas palavras sombrias que saíram de sua pena 8655_6390_000027 esperança de poder publicar o pouco que da minha pena sair sinto-me ir morrendo é não só na dissolução física também na espantosa esterilidade do meu espírito reconheço sem horror a aproximação do meu último dia 8655_6390_000028 preludiava a emancipação politica de sua pátria foi eleito deputado secretário da junta provisória criada no rio de janeiro a confiança popular distinguia já esse nome respeitável que era uma garantia de ordem e tranquilidade pública 8655_6390_000029 de seu cérebro onde parecia arder a luz perene da ciência o espírito sente-se como tocado de uma concentração religiosa percorrendo estas páginas venerandas onde um pensador vigoroso e fecundo depôs o selo do seu imenso saber 8655_6390_000030 mas a quem jamais nas horas dos íntimos pensares não terá assomado uma ideia de tristeza e desengano cruel quem não terá nesta vida descrido um dia da bondade dos homens esse pressentimento sinistro está escrito na historia 8655_6390_000031 poucas nações poderão como o brasil gloriar-se de apresentar era tão curto espaço de tempo um número tão avultado de grandes ilustrações em todos os ramos dos conhecimentos humanos 8655_6390_000032 nele o homem religioso fazia desaparecer o politico o profundo pensador e moralista não descia da altura de suas abstrações filosóficas para envolver-se no turbilhão dos acontecimentos que se debatiam como em um mar agitado seu nome 8655_6390_000033 e prendeu os seus principais membros mandando contra eles instaurar uma rigorosa devassa pereira da fonseca como membro desta academia foi então preso no dia quatro de dezembro desse ano 8655_6390_000034 e aí adquiriu essa longa prática dos negócios esse hábito do trabalho e esses conhecimentos experimentais tão necessários ao homem público 8655_6390_000035 em menos de meio século uma geração completa de pensadores sábios e literatos ostentou aqui a sua força e fecundidade e honrou as armas da pátria 8655_6390_000036 foi escolhido senador pelo rio de janeiro de mil oitocentos e vinte e seis sendo mais tarde nomeado visconde depois marquês de maricá sua vida pública foi plácida e serena homem de gabinete caráter eminentemente 8655_6390_000037 hino à virtude um culto à verdade o filósofo o publicista o legislador o diplomata o homem de estado o literato aí encontrarão todas as verdades profundas que o ilustre sábio desentranhava 8655_6390_000038 as paixões do mundo não ousavam transpor as avenidas do seu retiro aí nessa mansão serena do pensamento dedicava-se ao culto da verdade e ao estudo da filosofia depois de haver tratado e conhecido os homens e as coisas 8655_6390_000039 livre enfim por ordem régia dos horrores do cárcere onde o lançara a mão de um absolutismo suspeitoso continuou em sua profissão de negociante 8655_6390_000040 o horizonte de suas ideias alargou-se com o trato dos homens e das coisas e o seu espírito de reflexão aproveitou para a ciência o resultado da sua experiência e observações em mil oitocentos e vinte e um quando já o movimento das ideias 8655_6390_000041 escritos históricos e literários estudos históricos brasileiros biografia do barão do triunfo discurso feito no ato da inauguração da estátua de josé bonifácio 8655_6390_000042 não eram porém os tempos propícios a estas inocentes expansões da inteligência em mil setecentos e noventa e quatro o vice-rei conde de rezende suspeitoso e desconfiado dissolveu violentamente esta associação de beneméritos literatos 8655_6390_000043 novembro de mil oitocentos e vinte e três lugar que serviu até vinte e três de novembro de mil oitocentos e vinte cinco distinguido se por sua proverbial probidade fez parte do conselho de estado que elaborou a constituição jurada em mil oitocentos e vinte e quatro 8655_6390_000044 um tesouro imenso de profundas verdades ali encerrara-se para conduzir a humanidade no caminho da virtude poucos nomes têm na história uma reputação tão pura e tão nobremente adquirida 8655_6390_000045 e o e setecentos artigos com o título máximas pensamentos e reflexões afigurou-se me ser esta uma missão que de deus recebera e comecei a desempenhá-la no período da mais plena madureza da minha inteligência foi o objeto das minhas 8655_6390_000046 de arte e de estilo que cumpre guardar é nesses pensamentos isolados que resumem muitas vezes uma grande verdade que se revela o talento superior do escritor que se apura mais a precisão das ideias a concisão e a sobriedade 8655_6390_000047 com desinteresse e inteireza serviu sucessivamente até mil oitocentos e vinte e um diferentes lugares de administração 8655_6390_000048 tendo representado por vezes são paulo na câmara dos deputados foi depois da república intendente municipal da capital federal 8655_6390_000049 nascido no seio de uma família abastada e das principais do país seus pais cedo trataram de dar-lhe uma educação apurada e na idade de onze anos o mandaram para portugal 8655_6390_000050 fecundas colhidas no grande livro do mundo aí se acham acumuladas a filosofia cristã nunca teve um intérprete mais eloquente a moral religiosa nunca encontrou um apóstolo mais fervoroso cada pensamento aí é um 8655_6390_000051 foi diretor interino da instrução pública da capital do brasil administrou com critério e tino as províncias de são paulo ceará e rio grande do sul 8655_6390_000052 vigílias desde a idade de sessenta anos até os setenta e três anos completos procurei ser útil a humanidade e nem a forma de que revesti os meus pensamentos é das menos próprias para alcançar tal fim compreendi eu a minha 8655_6390_000053 via e confessava as fraquezas dos homens mas a palavra santa da tolerância religiosa estava em seus lábios e a admiração das grandes obras da natureza vinha logo misturar-se a essa dor moral em seu livro de máximas 8655_6390_000054 com o distinto poeta manoel ignacio da silva alvarenga e retido incomunicável por dois anos sete meses e quinze dias 8655_6390_000055 eles que dissipam o erro e descobrem as verdades sociais que devem muitas vezes mudar o destino dos povos antes que a revolução francesa aparecesse seus princípios se tinham já agitado com ardor no cérebro de rousseau e voltaire e uma coorte 8655_6390_000056 vem aliar-se a lucidez da expressão consideradas por esse lado as máximas do marquês de maricá constituem um primor dobra e revelam um literato artista de apurado gosto cada palavra tem aí o seu quilate 8655_6390_000057 do espírito e vinha de novo pousar sobre sua pena é o que nos explica algumas repetições que se notam na coleção de suas máximas há ali talvez algumas reflexões sombrias verdades amargas que levam a desilusão ao espírito 9056_7087_000000 isto vemos sucedeu no tempo d'el-rei d duarte quando ordenou que todo o fidalgo que não tivesse cargo na côrte que fosse a viver nas suas terras 9056_7087_000001 a conversação que se deve ter com as senhoras não há de ser sobre matéria grave séria estas conversações judiciosas ficam reservadas para algum velho ou para algum notado de extravagante 9056_7087_000002 e ficarem na corte porque pela adulação pelo agrado e pelas artes dos cortesãos sabiam ganhar as vontades dos reis não tendo aquelas ocasiões forçosas de obrarem ações ilustres para serem premiados por elas 9056_7087_000003 discorre o médico acerca das causas que abastardaram a educação dos fidalgos mas tanto que os reis tiveram mais que dar que as terras da coroa 9056_7087_000004 aí está o aviso do cristão novo seguido e executado dois anos depois quanto a fundação do colégio dos nobres depois indica o doutor ribeiro sanches as ciências que devem ensinar-se já no colégio já nas aulas militares 9056_7087_000005 a rainha tem um anão índio que anda sempre com ela é tão bem proporcionado que parece uma criança visto pelas costas mas pela frente não que já tem barba já tinha sido da rainha mãe e goza da fama de engraçado 9056_7087_000006 o príncipe e ela dão audiência todas as terças-feiras ele é corpulento rosto magro e trigueiro desde que esteve doente usa cabeleira 9056_7087_000007 com as riquezas do oriente caiu a fidalguia no maior luxo e por consequência naquele total esquecimento da boa educação que tinha ou na paço dos reis antigos ou em casa de seus pais no tempo d'el-rei d pedro o justiceiro 9056_7087_000008 porque estas são mais velhas e sabem mais para destruir aquela primeira inteligência do menino chega a idade de caminhar já tem seu mocinho ordinariamente escravo e como foram pelas mães criados por tais amas e velhas são os terceiros mestres até a idade de seis ou sete anos 9056_7087_000009 são os portugueses mais ciosos de suas esposas que os espanhóis as mulheres saem de casa menos vezes que as de madrid o que faz que lá se diga que elas vão a igreja três vezes no ano batizar-se casar-se e 9056_7087_000010 a rua dos mercadores é muito bonita há aí bons acepipes e confeitos excelentes a dezoito de maio comemos cerejas e damascos já maduros o que é incômodo é não haver neve nem as bebidas refrigerantes de espanha 9056_7087_000011 são os primeiros mestres da língua dos desejos dos apetites e das paixões depravadas chegou o menino a falar já está cercado de duas ou três mulheres mais ignorantes mais supersticiosas do que ela 9056_7087_000012 mas espero ainda ver nos meus dias estabelecimentos semelhantes em tudo ou em parte que satisfaçam todo o meu desejo eu tinha vontade de prolongar o traslado mas a leitora que é mãe jovem e formosa desdenha os conselhos do médico 9056_7087_000013 alcunhado o voador foi sempre malquisto dos frades que perseguiram como necromante o inventor dos balões três homens afetos a d joão v foram grandemente satirizados naquele tempo 9056_7087_000014 e assim sucede que ficam as senhoras por toda a vida ordinariamente meninas no modo de pensar e com tão miseráveis princípios vem elas as suas amas as suas aias e donas a serem os mestres daqueles destinados a servir os reis 9056_7087_000015 e quando morreu parte dos seus haveres as joias de sua defunta mulher estavam empenhadas e foram vendidas em hasta publica 9056_7087_000016 porque os seus mestres sendo eclesiásticos e ignorantes da obrigação de súbdito de filho e de marido chegavam á idade da adolescência com o animo depravado sem humanidade porque não conheciam igual 9056_7087_000017 enfermidade tão considerável que muitas ou perdem a vida ou ficam achacadas perdendo em poucos anos o ídolo da sua beleza ficando frustradas do seu intento e expostas a viverem por toda a vida com mil desgostos e pesares 9056_7087_000018 vossa ilustríssima sabe muito melhor do que eu é que os monumentos que temos na história romana e também na nossa de tantas mães que por criarem e ensinarem seus filhos foram as que salvaram a pátria e ilustraram 9056_7087_000019 o marquês de pombal ou não quis ou apesar da sua onipotência não logrou assegurar repouso na pátria ao seu doutor oráculo em paga dos conselhos e projetos de boa administração que o neto de hebreus lhe sugeriu de paris 9056_7087_000020 sai pouco acompanhado e dizem ser afável e cortês a rainha traja à espanhola com guarda infante com os cabelos soltos pelas costas encaracolados e laçados de fitas 9056_7087_000021 tem uma filha que parece lindíssima cuja aia é a condessa de añon unhão segue-a o seu mordomo duque de cadaval 9056_7087_000022 mas o ex-secretário de d joão v morreu sem ter conhecido as necessidades dos que se dizem pobres do livro dos registros ou copiador dos ofícios remetidos do gabinete do duque regedor as corregedorias 9056_7087_000023 a requerimento de ana maria do vencimento conservando-se no preço destas joias a mesma hipoteca e direito que esta credora tem pela penhora que neles fez deus guarde a vosmecê 9056_7087_000024 é aí a praça dos touros o paço estava desalfaiado a capela rica de azul e ouro é belíssima os armazéns dos utensis destinados à marinha de guerra são aí ao pé 9056_7087_000025 com a declaração porém que o procedido das ditas joias se não confundirá com o preço dos outros bens ficando no valor destes conservada a penhora 9056_7087_000026 feiticeiras de duendes de crueldade e de vingança mas somos nascidos em sociedade civil e cristã aquelas ideais que nos dão as amas são destrutivas de tudo o que devemos crer e obrar ficam aquelas crianças expostas ao ensino de mulheres ignorantes supersticiosas 9056_7087_000027 indício certo que as senhoras não criavam já seus filhos como nos tempos anteriores introduziu-se este destrutivo costume da raça humana do amor filial e dos bons costumes 9056_7087_000028 mas é engano manifesto e o contrário se sabe pela experiência e pela boa física a mulher que deu a luz um filho e que não o cria em pouco tempo vem a conceber de novo 9056_7087_000029 no panorama e arquivo há artigos de bons investigadores mas pouco mais fazem que distender as notícias de nicolau de oliveira e outros que viram a lisboa do século dezessete 9056_7087_000030 costumavam os nossos avós queimar os judeus não assevero que os avós de quem isto escreve não fossem também queimados se os não colhiam as mãos confiscavam-lhes os bens mas 9056_7087_000031 o que tenho visto impresso não satisfaz a curiosidade joão batista de castro o autor do mapa de portugal conheceu a velha lisboa e o que nos disse é tão diminuto que pouco vale 9056_7087_000032 as liteiras são mais que as carroças mas não magníficas e porque a cidade se forma de outeiros o que mais se usa são cavalos e mulas as igrejas são aciadíssimas e formosas os portugueses andam armados de espada e punhal 9056_7087_000033 dado caso que os judeus fugitivos enviassem lá do exílio aos reis ou aos ministros bons alvitres da arte de governar aceitavam-lhes o favor e praticavam o seu parecer mas não lhes concediam voltarem ao reino sem a condição de se deixarem torrar 9056_7087_000034 vive em sua casa que foi confiscada ao marquês de castelo rodrigo que seguiu o partido de castela quando portugal se rebelou segundo os tratados os bens já deviam ter sido restituídos ao marquês mas até agora nem nisso pensam 9056_7087_000035 há mais de dois séculos que um viajante francês de grande qualidade esteve em lisboa volvidos trinta anos o filho do companheiro de viagem desse incógnito senhor mandou imprimir em holanda as viagens que seu pai escrevera e deu este título ao livro 9056_7087_000036 que não é mãe de certo não percebeu as teorias fisiológicas em que se fundamentam as censuras e o leitor que de certo leu á esposa as paginas impregnadas de maternidade naquele tom circunspecto de nossos avós patriarcais dorme 9056_7087_000037 e como não é coisa nova hoje em europa esta sorte de ensino com o título de corpo de cadetes ou escola militar ou colégio dos nobres 9056_7087_000038 todas entraram na organização dos estatutos em um parágrafo intitulado em que idade deveriam entrar os educandos na escola real militar divaga o insigne médico por considerações a respeito das mães transcrevo o que me parece digno de ser lido por elas 9056_7087_000039 agora faço o mesmo ao tio que morreu há pouco mais de mês e ninguém perguntou que pobretão era um que levaram na tumba dos pobres entre quatro tochas desde a rua chã até ao prado 9056_7087_000040 pois era era aquele ferreira rangel que todos ouvíamos e respeitávamos ó rapazes de há vinte anos a imprensa diária tem olheiros que superintendem em estupros facadas roubos e incestos 9056_7087_000041 depois o eterno silêncio envio os meus sentimentos aos sobrinhos ricos deste homem e dispenso-os do bilhete de visita fim do 9056_7087_000042 cuja escorva a neve daquela noite umedecera o morto deixou dois filhos e três ou quatro esbeltas meninas parece-me que os vi e conheci na minha mocidade ouvi dizer que voltaram ricos do brasil 9056_8708_000000 tremia pelo seu principezinho quantas vezes com ele pendurado do peito pensava na sua fragilidade na sua longa infância nos anos lentos que correriam antes que ele fosse ao menos do tamanho de uma espada e naquele tio cruel de face mais escura que no 9056_8708_000001 fojo espera a presa ai a presa agora era aquela criancinha rei de mama senhor de tantas províncias e que dormia no seu berço com seu guizo de ouro fechado na mão ao lado dele outro menino dormia noutro berço mas 9056_8708_000002 mais fortes nas atalaias ardiam lumes mais altos mas à defesa faltava disciplina viril uma roca não governa como uma espada toda a nobreza fiel perecera na grande batalha e a rainha desventurosa apenas sabia correr 9056_8708_000003 punhado de rubis ia ela escolher a ama estendia a mão e sobre um escabelo ao lado entre um molho de armas agarrou um punhal era um punhal de um velho rei todo cravejado de esmeraldas e que valia uma província agarrara o punhal 9056_8708_000004 mas a água mais o queimava como se fosse um metal derretido recuou caiu para cima da relva que arrancava aos punhados e que mordia mordendo os dedos para lhe sugar a frescura 9056_8708_000005 a cada instante ao berço do seu filhinho e chorar sobre ele a sua fraqueza de viúva só a ama leal parecia segura como se os braços em que estreitava o seu príncipe fossem muralhas de uma cidadela que nenhuma audácia pode transpor ora uma 9056_8708_000006 depois da poeira e ardor do caminho de spoleto era doce e larga sombra dos castanheiros e a relva que lhe refrescava os pés doloridos a meia encosta numa rocha onde se esguedelhavam 9056_8708_000007 deus vos vele entretanto meu irmão deus vos sossegue e vos ampare com a sua mão direita mas egidio cerrara os olhos nem se moveu 9056_8708_000008 e coração mais escuro que a face faminto do trono espreitando de cima do seu rochedo entre os alfanjes da sua borda pobre principezinho da sua alma com uma ternura maior o apertava então nos braços mas o seu filho chalrava ao lado era 9056_8708_000009 quando frei silvestre já tão doentinho sentira aquela longo desejo de uvas moscatéis o bom francisco de assis logo o conduziu à vinha e por suas mãos lhe apanhou os melhores cachos depois de os abençoar para serem mais sumarentos e mais doces 9056_8708_000010 sob o pedaço de linho branco que resguardava a sua nudez a existência na verdade era para ele mais preciosa e digna de ser conservada que a do seu príncipe porque nenhum dos duros cuidados com que ela enegrece a alma dos senhores roçaria sequer a sua alma livre e simples de escravo 9056_8708_000011 era uma vez um rei moço e valente senhor de um reino abundante em cidades e searas que partira a batalhar por terras distantes deixando solitária e triste a sua rainha e um filhinho 9056_8708_000012 que ainda vivia no seu berço dentro das suas faixas a lua cheia que o vira marchar levado no seu sonho de conquista e fama 9056_8708_000013 começava a minguar quando um dos seus cavaleiros apareceu com as armas rotas negro do sangue seco e do pó dos caminhos trazendo a amarga nova de uma batalha perdida e da morte do rei 9056_8708_000014 e com ele apertado fortemente na mão apontando para o céu onde subiam os primeiros raios do sol encarou a rainha a multidão e gritou salvei o meu príncipe e agora vou dar de mamar ao meu filho e cravou o punhal no coração 9056_8708_000015 para além na vereda um bando de corvos grasnava as éguas fartas dormitavam com o focinho pendido e a fonte cantava lavando o morto 9056_8708_000016 e o santo homem mentia santamente porque desde madrugada não provara mais que um magro caldo de ervas recebido por esmola à cancela de uma granja 9056_8708_000017 a leal escrava porém a ambos cercava de carinho igual porque se um era o seu filho o outro seria o seu rei nascida naquela casa real ela tinha a paixão a religião dos seus senhores nenhum pranto correra mais sentidamente 9056_8708_000018 raios de deus era um lume um lume vivo que se lhe acendera dentro lhe subia até às goelas já rasgara o gibão atirava os passos incertos e 9056_8708_000019 tenho sobre as lajes num choro despedaçada então calada muito lenta muito pálida a ama descobriu o pobre berço de verga o príncipe lá estava quieto adormecido num sonho que o fazia sorrir lhe iluminava toda a face entre os seus 9056_8708_000020 e com a mesma caridade com que tratava os leprosos convertia os bandidos durante as invernias e a neve vezes inumeráveis dava aos mendigos a sua túnica as suas alpercatas 9056_8708_000021 e como mais de três anos tinham passado desde que visitara o bom egídio largou a estrada passou embaixo no vale sobre as alpondras o riacho que fugia por entre os aloendros em flor e começou a subir lentamente a colina frondosa 9056_8708_000022 e tornava-a limpa e cândida como um desses celestes jardins em que o solo anda regado pelo senhor e onde só podem brotar açucenas 9056_8708_000023 mas ai dor sem nome o corpinho tenro do príncipe lá ficara também envolto num manto já frio roxo ainda das mãos ferozes que o tinham esganado assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os homens de armas quando a rainha deslumbrada 9056_8708_000024 que assim deixava o filhinho desamparado no meio de tantos inimigos da sua frágil vida e do reino que seria seu sem um braço que o defendesse forte pela força e forte pelo amor desses inimigos o mais temeroso era seu tio 9056_8708_000025 beijava também por amor dele o escravozinho que tinha o cabelo negro e crespo os olhos de ambos reluziam como pedras preciosas somente o berço de um era magnífico e de marfim entre brocados e o berço de outro pobre e de verga 9056_8708_000026 já o sol se erguia e era tarde e o seu menino chorava decerto e procurava o seu peito e então a ama sorriu e estendeu a mão todos seguiam sem respirar aquele lento mover da sua mão aberta que joia maravilhosa que fio de diamantes 9056_8708_000027 se viera estender naquele canto para acabar mas havia meses que com ele entrara um cansaço que nem podia segurar a bilha cheia quando voltava da fonte 9056_8708_000028 as únicas alegrias completas nada o deliciava mais do que chegar de noite molhado esfaimado tiritando a uma 9056_8708_000029 dolorosa e a beijou e lhe chamou irmã do seu coração e de entre aquela multidão que se apertava na galeria veio uma nova ardente aclamação com súplicas de que fosse recompensada magnificamente serva admirável que salvara o rei e o reino mas como 9056_8708_000030 estendido sobre o cotovelo descansando pensava em medranhos coberto de telha nova nas altas chamas da lareira por noites de neve e o seu leito com brocados onde teria sempre mulheres 9056_8708_000031 misturado ao vinho o tornaria a ele a ele somente dono de todo o tesouro anoiteceu dois corvos de entre o bando que grasnava além nos silvados já tinham pousado sobre o corpo de guannes 9056_8708_000032 os abades dos mosteiros ricos as damas devotas de novo o vestiam para evitar o escândalo de sua nudez através das cidades e sem demora na primeira esquina ante qualquer esfarrapado ele se despojava sorrindo 9056_8708_000033 a fonte cantando lavava o outro morto meio enterrado na erva negra toda a face de rui se tornara negra uma estrelinha tremeluzia no céu o tesouro ainda lá está na mata de roquelanes 9056_8708_000034 em breve avistou com efeito o rebanho de porcos espalhados sob as frondes roncando e fossando as raízes uns magros e agudos de cerdas duras outros redondos com o focinho curto afogado em gordura 9056_8708_000035 e docemente para não importunar se àquela hora da sesta estivesse recolhido e orando frei genebro empurrou a porta de pranchas velhas que não tinha loquete para ser mais hospitaleira 9056_8708_000036 cabelos de ouro a mãe caiu sobre o berço com um suspiro como cai um corpo morto e nesse instante um novo clamor abalou a galeria de mármore era o capitão das guardas a sua gente fiel nos seus clamores havia porém mais tristeza que 9056_8708_000037 neste canto a morrer a morrer meu irmão frei genebro acudiu em grande dó encontrou o bom ermitão estirado num monte de folhas secas encolhido em farrapos 9056_8708_000038 e abafando os seus gritos no manto abalou furiosamente o príncipe dormia no seu novo berço a ama ficara imóvel no silêncio e na treva mas brados de alarme atroaram de repente o palácio pelas janelas perpassou 9056_8708_000039 que bolsas de ouro podem pagar um filho então um velho de casta nobre lembrou que ela fosse levada ao tesouro real e escolhesse de entre essas riquezas que eram como as maiores dos maiores tesouros da índia todas a que o seu desejo apetecesse 9056_8708_000040 a montaria num raio de luz a habitar o palácio do seu senhor e a fiar de novo o linho das suas túnicas e a acender de novo a caçoleta dos seus perfumes seria no céu como fora na terra e feliz na sua servidão todavia também ela 9056_8708_000041 ou porque adormecera ou porque seu espírito tendo pago aquele derradeiro salário ao corpo como a um bom servidor para sempre partira finda a sua obra na terra 9056_8708_000042 e há quanto tempo há quanto tempo neste abandono irmão egídio louvado deus desde a véspera só na véspera à tarde depois de olhar uma derradeira vez para o sol e para a sua horta